|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JANIO DE FREITAS
O afrouxamento geral
"E ele me dizia simplesmente o seguinte: "A nossa instituição está quebrada, estamos falidos. O processo de corrupção que aconteceu antes de
nós foi muito grande". (...) Eu
disse ao meu companheiro:
"Olha, se tudo isso que você está
me dizendo é verdade, você só
tem o direito de dizer para mim.
Aí para fora você fecha a boca"
(...)."
É possível alguma dúvida a
respeito do sentido dessas poucas
frases, seja no que se refere ao governo de Fernando Henrique
Cardoso ou à ordem para ocultar?
Muitos quilômetros de papel e
horas de telejornalismo estão
sendo gastos, desde a noite de
quinta-feira, com as pretensas
atenuações, por todos os que têm
voz política no governo, do sentido das frases discursadas por Lula. E, como coadjuvantes do gasto, representantes dos atingidos
saem com desafios, represálias
aparentes e duvidosas exigências de retratação.
Parece um choque entre as
duas principais correntes políticas pelo controle, atual e futuro,
do poder. Não é. Ou só é à primeira vista.
O afrouxamento dos limites
éticos e legais, nos níveis altos da
vida institucional brasileira, tem
avançado nos últimos anos com
ritmo e alcance avassaladores.
Esse processo se expõe por atos
dos que o produzem e dos que a
ele aderem. É natural, então,
que em certas ocasiões ocorra
uma concentração de diferentes
evidenciações do processo. O que
houve nos últimos dias foi uma
crise aguda de exposição, com
diferentes personagens exibindo
o que as faz construtoras do processo ou o que dele absorvam por
fraqueza e ambição.
Pode-se explicar a escolha dos
dirigentes de uma instituição
com a estatura da Câmara dos
Deputados, como se deu agora,
sem tomar como fator primordial o afrouxamento dos princípios éticos e culturais da ação
política? Mas o problema não
pode estar só na Câmara. Em
1992 um presidente da República ruiu sob a acusação de numerosas transgressões, suas e de familiares e auxiliares mais próximos. Quantos condenados se poderia citar? Se não houve condenados, o que tinha havido a ponto de derrubar um governo? Os
fatos ocorreram e ficaram conhecidos; condenações, não.
Nem o assassinato de um do grupo resultou em condenação. Foi
a partir de Collor que o processo,
vindo de longe, acentuou sua
evidenciação, sem encontrar resistência.
Lula, com sua frase, regurgitou
parte de algo que aceitou ingerir,
em adesão explícita ao afrouxamento ético e legal. O pacto de silêncio que fez com Fernando
Henrique Cardoso, componente
da dita "transição civilizada",
foi parte da reviravolta petista
para adoção, como prioridade
do governo e do partido, das regras historicamente impostas ao
país pelo poder econômico. Nenhum governo levou tão longe a
aplicação dessas regras quanto o
de Fernando Henrique. Mas servir à lei e ao dever ético presidencial, e investigar as tantas pistas
deixadas pelas privatizações e
outros negócios dos anos precedentes, seria afastar-se das regras do poder econômico. Ou seja, da prioridade adotada pelos
convertidos Lula e companheiros.
Desde os primórdios do governo, Lula mostrou sua dificuldade de conciliar a sujeição à regra
tradicional e, incontível, o sentimento de grande vitorioso, de
poderoso incontrastável, de personagem da admiração planetária. A "herança maldita" logo virou um carimbo de Lula para o
governo Fernando Henrique.
Diferentes versões surgiram para
variar com o carimbo original. E
tudo o que Fernando Henrique e
circunstantes puderam fazer,
sempre, foi fingir que respondiam.
Talvez pela derrota na Câmara, talvez pela demonstração
amazônica de seu abandono a
tudo o que pregou por duas décadas, na quinta-feira Lula caiu
em um momento discurseiro de
maior fúria, seu rosto lembrava
o Lula das portas de fábrica. Regurgitou o que se obrigara a calar. Fernando Henrique retrucou como de hábito, aí se ressaltando dois instantes. Uma frase
escrita na nota pessoal: "Mandei
apurar todas denúncias que chegaram a mim". Uma frase dita
na acanhada entrevista de TV:
"Se houve alguma coisa, tem
obrigação de apurar".
Fernando Henrique referia-se
à obrigação de Lula. Essa última
frase foi providencial, para que
houvesse ao menos uma verdade
reconhecível na sua, vá lá, reação. Em vez de "mandar apurar", Fernando Henrique impediu todas as CPIs e frustrou todas as outras investigações -repito: todas- de evidências de
corrupção em seu governo. Inclusive flagrante de negociata
dentro da própria Presidência,
com a prova inequívoca obtida
por um integrante do governo (a
gravação providenciada por
Francisco Graziano). Figura
central desse negócio flagrado, o
embaixador Júlio César Santos
foi agraciado por Fernando
Henrique, sem dúvida bem motivado para isso, com uma embaixada em Roma.
Fernando Henrique há de se
lembrar de sua voz na gravação
em que autoriza o uso do seu nome para influir na condução, pelo BNDES, do resultado de uma
privatização de telefônica. Nem
deve ter esquecido da viagem sigilosa de um ministro seu à Espanha, Luiz Carlos Mendonça
de Barros, para encontros secretos com dirigentes da empresa
que veio a ser a maior vencedora
nas privatizações de telefônicas.
Fernando Henrique tem boa
memória, não é preciso citar
mais.
Quanto à outra frase, caso verdadeira sua afirmação de que, a
haver "alguma coisa, [Lula] tem
a obrigação de apurar", Fernando Henrique não seria parte dos
entendimentos que deram na
"transição civilizada" tanto
quanto silenciosa sobre conhecidos feitos do seu governo.
Presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim não
faltou com sua contribuição para a crise aguda de evidenciações do afrouxamento ético e legal, nas cúpulas da vida brasileira. Nesse estado de coisas, é compreensível que alguém confesse
uma alteração, sem conhecimento dos constituintes, no texto
que viria a ser a Constituição, e,
além de se manter no cargo mais
elevado do Judiciário, nenhum
questionamento lhe seja feito.
Sendo assim, quem estranharia,
agora, que o mesmo presidente
do STF andasse pela Câmara,
dias atrás, a fazer "lobby" para
um projeto que o beneficia em
pessoa, e aos colegas de tribunal,
com aumento dos seus vencimentos.
O político-magistrado aproveitou a ocasião, porém, para afirmar que "a equiparação global"
dos vencimentos é o "melhor" a
ser feito. Os deputados que querem equiparar os seus vencimentos aos do Supremo Tribunal Federal não poderiam ouvir palavras mais doces. Nem mais estimuladoras para votarem o aumento do STF buscado por Jobim,
pois, com esse, crescerá ainda
mais a elevação que já pleiteiam
sob a bandeira de Severino Cavalcanti.
Mas o que se viu também, nesse
episódio, foi o próprio presidente
do STF antecipando, publicamente, sua opinião sobre matéria
que tende a ser objeto de julgamento naquele tribunal. O afrouxamento ético e legal não atinge
só as alturas do Executivo e do Legislativo.
Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Segunda Guerra Mundial: Conquista de Monte Castello faz 60 anos Índice
|