São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NO PLANALTO

Alô, alô, torcida brasileira, vem aí o Probola

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

O futebol brasileiro é o melhor do mundo. Do resto do mundo, claro. No Brasil, futebol é nostalgia. Só existe no replay esmaecido dos lances do passado.
As maiores torcidas oscilam entre o pasmo e o desalento. O Flamengo -quem diria?- tornou-se um sub-Volta Redonda. O Corinthians -quem te viu, quem te(vez)!-, virou sucursal do Boca Juniors.
Embora gerido por homens de bens, os clubes nacionais negligenciaram uma regra capital: se esqueceram de dar lucro. A penúria tonifica a diáspora de jogadores.
Deus continua sendo brasileiro. Mas o diabo naturalizou-se espanhol. E leva embora craques ainda fedendo a cueiro. Os Robinhos que restam são exportações esperando para acontecer.
Sobre os gramados nacionais, ermos de talento, brotam idéias exóticas. A mais extravagante foi plantada no círculo central pelo ministro Agnelo Queiroz (Esportes).
Trata-se de um programa governamental de socorro ao clubes, uma espécie de Probola. Chama-se Timemania o naco mais festejado do pacote. É uma nova loteria, destinada a forrar as arcas obscuras dos times.
A novidade, que flutuou por cerca de um ano sobre a cena brasiliense como balão de ensaio, está agora assentada num esboço de medida provisória. A Timemania será parecida com a Mega-Sena.
A diferença é que, em vez de marcar números, o apostador assinalará nas cartelas emblemas de clubes. As combinações vencedoras serão definidas em sorteios geridos pela Caixa Econômica Federal.
Diz-se que a grana amealhada será usada prioritariamente para saldar as dívidas dos times com a União. Estima-se que cada grande clube vá receber algo como R$ 4 milhões por ano. Corresponde a pouco mais da metade do que o Barcelona fatura anualmente com a venda de réplicas da camisa 10 de Ronaldinho Gaúcho.
A Timemania talvez não baste para tirar os times da lama (só à Previdência, as principais flâmulas do futebol pátrio devem mais de R$ 1 bilhão). Mas a nova loteria servirá para envenenar o já aziago cotidiano da torcida.
Sete em cada dez brasileiros que testam a sorte nos jogos de azar do governo têm renda inferior a três salários mínimos. Ou seja, a tabelinha do governo com a cartolagem resultará num inusitado ataque ao bolso da galera desengonçada da geral.
O cassino governamental administra nove tipos de jogo: Loteria Federal, Loteria Esportiva, Loteria Instantânea, Mega-Sena, Lotomania, Quina, Dupla Sena, Lotofácil e Lotogol. Rendem mais de R$ 3,5 bilhões por ano.
Sob Lula, o governo faz do pano verde um modo de vida. Além da LotoAgnelo, estacionada na Casa Civil da Presidência, já está na praça a LotoTarso. Consta do artigo 52 da proposta de reforma universitária. Também a pasta da Cultura ambiciona a sua LotoGil.
Os times de futebol já beliscam uma ínfima parte da renda da Loteria Esportiva. Recebem um percentual pela utilização de suas logomarcas. O mimo é extensivo aos clubes estrangeiros. Estes, porém, desavisados, ainda não reclamaram o quinhão a que têm direito por lei.
Auditoria do Tribunal de Contas da União constatou que o naco devido aos times de outros países adormece numa conta da Caixa Econômica. O montante roça a casa dos R$ 10 milhões.
Num voto proferido em agosto de 2003, o ministro Marcos Vilaça referiu-se assim às transferências: "A questão torna-se mais dolorosa com a constatação de que os valores arrecadados são, em grande parte, despendidos por pessoas de baixa renda, e os clubes brasileiros atravessam fase de penúria, com o êxodo de craques e o progressivo esvaziamento das nossas principais competições futebolísticas."
Há, porém, coisa pior: nos porões do salão de jogos do governo funciona uma lavanderia de dinheiro. O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) identificou mais de 30 brasileiros cuja sorte no jogo desafia a lógica.
São pessoas capazes de ganhar 20, 30 concursos de loteria. A esmagadora maioria mora no Estado de São Paulo. O grupo embolsou nos últimos anos perto de R$ 15 milhões.
O repórter Rubens Valente revelou em setembro do ano passado o curioso caso do deputado Francisco Garcia (PP-AM). Junto com o filho, ele foi contemplado em 43 bilhetes. Amealharam R$ 811 mil entre 1996 e 1998. Garcia atribuiu a ventura à experiência com futebol e ao uso do computador.
A Polícia Federal suspeita que a "sorte" de felizardos como o deputado Garcia tem outra origem. Há no Brasil um mercado negro de loterias. Bilhetes sorteados são comprados por valores superiores à premiação da Caixa Econômica. Por essa via, fortunas de origem escusa podem ser declaradas normalmente à Receita Federal. Dinheiro encardido vira grana limpa.
Novas ou velhas, as loterias do governo são sempre embrulhadas para presente. Argumenta-se que têm destinação nobre. Financiam do Fundo Penitenciário ao crédito educativo. Coisas que deveriam ser bancadas pelos impostos que a Receita Federal tão competentemente arranca da sociedade.
No fundo, as loterias não passam de uma forma disfarçada de tributar a bugrada. A Timemania açulará os ânimos daqueles que chegam a apostar o pão das crianças. Sem nenhuma garantia de restituição do circo futebolístico.
Com o auxílio da mídia, o governo continuará propagandeando os ganhadores. O verdadeiro resultado, porém, será ignorado como sempre: para cada vencedor os certames lotéricos semanais produzem mais de 40 milhões de perdedores. E viva o futebol. Uhuh-têrêrê!
  Outro assunto: ao misturar metáforas de segunda à revelação de que empurrou para debaixo do tapete a corrupção da era FHC, Lula consagrou um novo tipo de pronunciamento presidencial. Inaugurou o discurso suicida.


Texto Anterior: Religião: Negros são minoria na igreja, revela estudo
Próximo Texto: Caso Gtech: Empresa barra no TRF quarto pregão da Caixa
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.