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São Paulo, quinta-feira, 27 de março de 2003

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JANIO DE FREITAS

A guerra das TVs

Tão rápida foi a consagração da TV como instrumento de jornalismo, quanto está sendo o seu desgaste, na opinião dos observadores mais atentos da cobertura no Iraque. De fato, estão muito perceptíveis, de uma parte, as restrições à liberdade de informação, praticadas por repórteres e comentaristas; de outra, o uso da TV, por parte dos militares. Nos dois casos, o propósito comum de manipular a opinião pública.
O problema não é novo, mas está produzindo contaminações sobre o jornalismo impresso e, a propósito da guerra no Iraque, equívocos dos leitores/espectadores sobre as causas e práticas antijornalísticas.
A integração dos repórteres às colunas do ataque anglo-americano e as fardas por eles usadas estão vistos como atestados do seu servilismo, na difusão de notícias moldadas pelo interesse militar. Estar integrado à tropa não é, por si só, comprometimento algum, é necessidade, para acompanhar as operações. Assim é desde que há reportagens em frentes de guerra.
O uniforme para correspondentes de guerra também é antigo, com a finalidade de evitar fatos como a morte do repórter de TV inglês, confundido com iraquianos em fuga e baleado por "fogo amigo" logo no segundo dia da guerra no Iraque. Rubem Braga, Joel Silveira e os demais correspondentes brasileiros vestiram os seus uniformes da FEB, na qual foi adotada, inclusive, a patente de capitão para os jornalistas, como nas tropas de muitos outros países.
Na guerra, como na paz, as deformações jornalísticas são, sempre, decorrentes de predisposição à subserviência, pelo jornalista, ou de posição impositiva definida pela direção (não esqueçamos que a posição, por mais condenável que seja, é executada por jornalistas).
Antes da guerra no Iraque, a operação para derrubar Hugo Chávez, na Venezuela, deveria servir como alerta sobre os problemas de contaminação da TV sobre os jornais. Até as imagens se tornaram operadas com má-fé, e assim foram distribuídas mundo afora. Nas manifestações anti-Chávez, as câmeras abriam-se para dar impressões extensivas. As manifestações pró-Chávez nunca foram tomadas com o que o leigo chamaria de panorâmicas. Grandes teleobjetivas eram usadas para enfocar apenas um pedaço da manifestação, de preferência onde fosse já rarefeita. As fotos para imprensa adotaram os mesmos recursos.
O que foi feito na Venezuela está em aplicação, agora com o refinamento da experiência, às manifestações antiguerra. Muito raras e rápidas foram as chamadas panorâmicas. Tornou-se norma o truque de enfoques individualizados e sucessivos -uma criança, um cartaz, uma ou outra pessoa-, em vez de mostrar a manifestação extensamente. A CNN, para citar um exemplo, dedicou razoável tempo à imensa manifestação em Nova York -mas só enfocando e entrevistando três hispano-americanos. Da manifestação mesmo, nada.
Como o material é quase todo o mesmo para todas as televisões, distribuído pelas agências ou vendido pela estação que o realizou, o espectador é vitimado sem diferenciação de fronteiras. Mas não só por infidelidade direta da TV.
Em um encontro da Associação de Jornalistas Europeus, ao qual compareci como palestrante, José Comas, jornalista de primeiro time do melhor jornal da atualidade, o espanhol "El País", abordou com irritação incontível um problema novo, particularmente inquietante para quem ostenta a sua admirável carreira de correspondente internacional.
Repórteres de jornal deslocados para eventos maiores estão indo aos fatos cada vez menos. É mais fácil ficar diante da televisão no hotel, passando de canal a canal. Quem veja a TV internacional encontrará no jornal do dia seguinte, como trabalho do correspondente, uma entrevista com um professor em Jerusalém, ou lá o que seja, que na véspera foi vista na BBC, ou na CNN ou F5.
Desse comodismo que se alastra resulta, primeiro, a uniformização mediocrizante do noticiário. O que faz um pouco de diferença é a maneira, pior ou melhor, como cada jornal expõe o material idêntico. O outro resultado, ainda mais grave, é que os jornais se tornam difusores das manipulações que o noticiário de TV tenha sofrido. No caso da Venezuela, tal contaminação foi escandalosa.
Por tudo isso, é indispensável ressaltar o mérito da RTPi, a tv portuguesa de transmissão internacional, que está dando a todas as concorrentes, com sua cobertura da guerra no Iraque, lições admiráveis de reportagem e de ética. Isso, em um país cujo governo apóia Bush, Blair e a guerra.


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