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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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JANIO DE FREITAS

As fontes verdadeiras

A dúvida é se Luiz Inácio Lula da Silva tem conhecimento de que a surpreendente linha econômica e social do governo, definida no documento "Políticas Econômicas e Reformas Estruturais" apresentado pelo ministro Antonio Palocci, provém de uma espécie de ONG financiada por instituições internacionais interessadas em tal linha. E que essa ONG intermediária tem um de seus dirigentes como secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, outro dos sócios como secretário-executivo do Ministério da Assistência e Promoção Social e um terceiro como secretário de Avaliação.
É difícil admitir que Lula da Silva tenha informação desse enlaçamento. Ainda assim, não poderá mais dizer, sob pena de ser inverdadeiro com a população, que a política econômica é transitória e forçada pela "grave situação" em que o governo passado deixou o país. A linha escolhida para enfrentar a situação, contrária a tudo o que Lula e o PT simbolizavam, sabe-se agora que não é forçada nem transitória.
A indignada entrevista da professora Maria da Conceição Tavares, na Folha da última segunda-feira, estabeleceu a identidade do documento divulgado por Palocci com a concepção, vigente no Banco Mundial, FMI & cia., de que o problema brasileiro básico é o déficit governamental. Ao passo que "todos os economistas bons desse país" localizam o problema básico no "estrangulamento externo, no aumento dos passivos externos" (dívida externa, seus juros, e balança de transações internacionais).
Diagnóstico diferente, receituário diferente. Ter o déficit como alvo de prioridade absoluta conduz à exacerbação dos cortes de investimentos e dos gastos com funcionalismo, aposentadorias e demais finalidades sociais. Como fez e faz o governo Lula, com os cortes de mais R$ 15 bilhões no Orçamento já sufocante deixado pelo governo anterior e, em seguida, com o aumento da sua meta de saldo neste ano, equivalente a mais uns R$ 55 bilhões para pagar juros.
Diante das necessidades sociais, a política de prioridade ao déficit adota o que chama de "focalização", que é a seleção de setores ou bolsões com os quais admite determinadas porções de gastos, em vez da concepção generalizadora chamada de "universalização". Mas centrar a divergência suscitada por Conceição Tavares apenas em "focalização" versus "universalização", como os adeptos da primeira estão forçando, é escamotear o principal: o diagnóstico e a decorrente linha de política econômica, dos quais "focalização" ou "universalização" não passam de instrumentos (apesar de seu profundo sentido ideológico).
Quase que só de passagem, porém, Conceição Tavares fez duas referências que foram pinçadas e ressaltadas aqui nesta coluna, como necessitadas de explicação pelos envolvidos. Uma delas: "As estatísticas sociais apresentadas no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social [aquele criado por Lula para definir as propostas de reforma] foram falsificadas". A outra dizia que os ocupantes dos postos citados no começo deste texto, quando ainda fora do governo, "montaram um instituto, que é uma ONG, que recebe em torno de US$ 250 mil do Banco Mundial para fazer o tal estudo especial para focalizar". Estudo do qual derivou o documento definidor da política econômica divulgado pelo ministro Antonio Palocci.
Marta Salomon, que figura no pequeno grupo dos melhores repórteres brasileiros, trouxe a resposta à segunda questão. O secretário de Polícia Econômica, Marcos Lisboa, que mandara a esta coluna correspondência negando os vínculos que a entrevista lhe atribuíra, tem mais do que simples vínculos. Integra o conselho de administração do instituto, Iets, que, além de financiado pelo Banco Mundial e outras entidades internacionais, como o Banco Interamericano, recebeu também altos valores do governo passado.
Só no último ano e meio do mandato de Fernando Henrique Cardoso, o Iets recebeu pelo menos R$ 3.425.957,00 o equivalente a 17.130 salários mínimos. Na correria de fim de mandato, dois pagamentos, nos dias 20 e 27 de dezembro, somando R$ 812.057,00, ou 4.310 salários mínimos. Tudo tão transparente, que os integrantes do Iets hoje na cúpula do governo e seus associados preferiram não publicar os exigidos balanços correspondentes a 2001 e 2002.
Pelo valor já verificado, e não é todo, a obra do Iets para o governo deve ser de gênios. Mas seu maior mérito, se não for o único, é o de levar à identificação da procedência, doutrinária e financeira, da surpreendente política econômica e social, ou antieconômica e anti-social, que está levando o governo a desprezar outro dos valores de que também Lula da Silva e o PT foram simbólicos: o direito democrático de divergir e o dever moral de ser coerente com os princípios está sendo negado aos membros do PT e aos ministros não petistas, para que calem seu desacordo com a política econômica e seus desdobramentos.


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