São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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ANÁLISE

ONGs avançam sobre esquerda

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ENVIADO ESPECIAL A PORTO ALEGRE

Na Babel contra o liberalismo que se formou em Porto Alegre, ecoa no ar uma dúvida: afinal, o que é isso, o Fórum anti-Davos? Qual o sentido político da reunião? Que vozes estão nela representadas? Quais desdobramentos o evento terá, se tiver algum além de sua mera realização? Nova esquerda? Festa de ONGs? Palco para o Partido dos Trabalhadores, o PT? Para as investidas anticapitalistas do MST?
Um pouco de cada uma dessas coisas, nem todas planejadas ou previstas desde o início pelos organizadores. Os pais da idéia, o empresário Oded Grajew, da Organização Não-Governamental (ONG) Cives (Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania), e o jornalista Bernard Cassen, da ONG francesa Attac (Ação por uma Taxação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos). Os dois imaginavam um encontro com menos ingerência dos políticos e sem os atos de "guerrilha" do MST.

Propostas práticas
O resumo mais preciso das intenções originárias do Fórum Social Mundial está no artigo "Porto Alegre", assinado pelo jornalista francês Ignacio Ramonet na primeira página da última edição do "Le Monde Diplomatique". Ramonet dirige essa publicação, que é uma espécie de revista em formato de jornal, de periodicidade mensal, uma das últimas alinhadas à esquerda com certa difusão mundial.
Diz ele: "(O Fórum existe) não para protestar, como em Seattle, Washington, Praga e outros lugares, contra as injustiças, as desigualdades e os desastres que provocam, um pouco por toda parte no mundo, os excessos do neoliberalismo. Mas para tentar, desta vez com espírito positivo e construtivo, propor um quadro teórico e prático que permita vislumbrar uma mundialização de tipo novo, que afirme que um outro mundo, menos desumano e mais solidário, é possível".
Dizendo-se ainda "atônito" com o assédio de mídia e público, Grajew aposta que o Fórum anti-Davos pode significar o embrião do que ele chama de "sociedade civil global", um contrapeso às empresas transnacionais e à ação do capital mundializado. É uma versão algo otimista e rósea para o destino do evento.
Cassen, por sua vez, diz estar mais interessado em ações concretas de movimentos organizados do que em fixar polarizações ideológicas entre "direita" e "esquerda", coisa que, segundo ele, perdeu o sentido.
Certas ou não, essas visões traduzem o fato de que se tenha falado tão pouco em "socialismo" e de que "revolução" seja uma palavra estranha ao Fórum anti-Davos. Como diz Frei Betto, presente ao Fórum, tem-se a impressão de que o Muro de Berlim está caindo outra vez, desta vez numa reunião das esquerdas. O marxismo é uma referência vaga e marginal no encontro.

ONGs e bioesquerda
É sintomático, nesse ambiente de baixa densidade ideológica e bandeiras políticas pulverizadas, que temas como o esgotamento dos recursos naturais do planeta, o sentido e os limites do progresso tecnológico ou a bioética ocupem lugar de destaque nas discussões.
O Fórum vai reafirmando a tendência de contaminação do pensamento de esquerda pelo ambientalismo e pelas Organizações Não-Governamentais. E não é à toa que alguns dos representantes mais qualificados do Fórum pertençam a essa chamada "bioesquerda".
Não existe, por parte dos organizadores, a intenção de tirar um documento oficial único de anti-Davos. Ele deve ser substituído por uma série de cartas de compromisso e formação de grupos de trabalho. Será mais uma vitória das ONGs sobre a grande política.


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