São Paulo, Domingo, 28 de Fevereiro de 1999
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LANTERNA NA POPA
A estranha arte de perder credibilidade


ROBERTO CAMPOS

Ao longo de 1998, e agora no começo de 1999, o Brasil passou a sofrer uma grave "crise de credibilidade". Essa crise, que é em parte de percepções psicológicas, se superpõe às distorções fundamentais oriundas do déficit gêmeo: fiscal e cambial.
Subitamente as conquistas efetivas do Plano Real, em termos de cura da inflação, modernização econômica pela reformatação do Estado, abertura internacional e privatização, ficaram esmaecidas. Nem mesmo a eliminação das incertezas políticas pela reeleição de FHC -afastando o perigo de Lula, com seus cacoetes anticapitalistas- conseguiu reverter em onda de pessimismo. Tornou-se aguda a percepção da "dupla armadilha". A armadilha cambial, resultante de que a flexibilização cambial indispensável para a melhoria do balanço de pagamentos é negativa sob o ponto de vista da estabilidade de preços. E a armadilha fiscal, resultante de que as puxadas de juros para conter a inflação e evitar a fuga de capitais estrangeiros agravam a dívida pública e trazem ameaça de insolvência.
Seria útil, a título de lições para o futuro, examinar os componentes dessa erosão de credibilidade:
1) o fracasso do "pacote 51";
2) a degradação do "risco soberano";
3) a frustração do acordo com o FMI;
4) o "dezembro negro";
5) a rebelião dos governadores.
A resposta do Brasil à crise asiática, que começou em julho de 1997, parecia inicialmente ágil e adequada. Houve uma puxada de juros que logrou, num prazo relativamente curto, não só repor o nível de reservas cambiais, mas elevá-las a US$ 74 bilhões. Só que as reservas não eram "reservas", e sim "recursos". A diferença é que a expressão "reserva cambial" só se deve aplicar a recursos estáveis, a saber, os oriundos de saldos em conta corrente ou de investimentos estrangeiros permanentes e de empréstimos de muito longo prazo. O que conseguimos foram recursos "voláteis", atraídos por juros altos ou especulação bursátil. São úteis, mas criam uma ilusão de ótica. No caso brasileiro, essa ilusão consistiu em acreditarmos que poderíamos continuar praticando um duplo gradualismo: gradualismo na desvalorização cambial e gradualismo no ajuste fiscal. Entretanto essas coisas são incompatíveis. A sustentação do gradualismo cambial exigiria radicalismo na reforma fiscal.
O pacote fiscal, chamado "pacote 51", teve dois defeitos: (a) proporções invertidas, pois que apenas 1/3 consistia em corte de gastos e 2/3 em aumento de arrecadação, o que implica transferir recursos do setor privado produtivo para o consumo governamental; (b) implementação assimétrica, porque o aumento de tributação foi executado, e o corte de gastos, desobedecido. No balanço, enquanto internamente nosso ajuste à crise asiática era considerado exitoso, ele era tido como inadequado pela finança internacional. O aumento de "reservas" serviu assim como falso sinalizador de um sucesso inexistente.
Uma segunda lesão de nossa credibilidade adveio de uma tresleitura da crise russa de agosto de 1998. Não se tratava apenas de uma crise temporária de liquidez, mas de uma dramática mudança da ecologia financeira. Acreditava-se até então que o "risco soberano" dos países era diferente do "risco de mercado" do setor privado. Em princípio, economias grandes não poderiam falir, porque o receio do contágio depressivo induziria operações de salvamento pelo FMI, pelos Tesouros dos países-chaves ou por organizações internacionais. E o "risco soberano" da Rússia parecia envolver condições que tornariam imperativas operações de salvamento: economia grande, potência nuclear, candidata à inserção no capitalismo ocidental. Quando o FMI suspendeu os desembolsos, tornando inevitável a moratória, houve um desastre ecológico no sistema financeiro. A aversão ao risco neutralizou nos investidores o "instinto de ganância", tornando a alta de juros inoperante e até mesmo negativa para a atração de capitais. No caso brasileiro, sabendo-se que o governo é o maior devedor, a puxada de juros passou a exercer efeito perverso, gerando medo de insolvência.
Nosso pacote de ajuste à crise russa foi "more of the same", ou seja, o mesmo tipo de resposta dado à crise asiática: puxada de juros e pacote fiscal, com priorização para a extração de receitas sobre o corte de gastos. Apenas a ecologia financeira tinha mudado. O pacote fiscal foi encarado internacionalmente com ceticismo, como se fosse um "pacote 51" requentado, e a alta de juros passou a ser um fator de intimidação em vez de atração de fluxos estrangeiros. Em nenhum dos dois pacotes se deu ênfase a um componente que teria sido eficaz e credível: aceleração das prismatizações, visando à redução do "estoque da dívida". E nenhuma indicação foi dada de que nos dispúnhamos a enfrentar tabus ideológicos, como os que até agora impediram a privatização da Petrossauro.
O terceiro episódio foi a patética negociação com o FMI, em novembro passado. Se havia a percepção de que a agravação da crise de pagamentos impunha o abandono do gradualismo cambial, o momento de fazê-lo seria no bojo da negociação com o FMI, apresentando-se em conjunto a flexibilização cambial, o pacote de ajuste interno e o esquema de apoio internacional. Tolamente, esse acordo foi apresentado ao público como um endosso internacional à manutenção de nosso gradualismo de bandas cambiais. Quando, semanas depois, tivemos de alargar as bandas e em seguida adotar o câmbio flutuante, transmitimos a impressão de que os financiadores internacionais tinham sido "tapeados" e de que nossos negociadores eram irresponsáveis.
Como se isso não bastasse, tivemos um quarto choque adverso à nossa credibilidade: o "dezembro negro". Várias coisas aconteceram nesse mês fatídico: (a) foi adiada a votação da CPMF, componente essencial do ajuste fiscal; (b) o Congresso rejeitou em primeira leitura, o projeto relativo a contribuições de funcionários ativos e inativos para saneamento parcial do déficit da previdência pública; (c) houve uma lamentável discussão entre os três poderes sobre o teto salarial do funcionalismo, gerando a impressão de que o teto não seria uma barreira intransponível, mas um objetivo a atingir pelos escalões inferiores. De tudo isso resultou a impressão de que a sociedade brasileira, em seu conjunto, não se tinha conscientizado da gravidade da crise.
O quinto episódio foi a rebelião dos governadores de oposição, gerando a impressão de descontinuidade no cumprimento de contratos.
No mês de janeiro de 1999 -paralelamente ao choque do câmbio flutuante e ao ridículo episódio de multicefalia no Banco Central- houve melhoria objetiva em vários pontos. A CPMF foi votada no Senado, a Câmara aprovou a contribuição de ativos e inativos, e melhoraram as perspectivas de uma reforma fiscal mais profunda. Mas o mal psicológico havia sido feito no "dezembro negro". E houve outro impacto negativo: a declaração de moratória do governador Itamar Franco. Esta provocou no exterior dois receios. O primeiro é o do "efeito contágio", de vez que a cultura do calote é um cacoete nacional e tem raízes até mesmo religiosas: a oração do padre-nosso, em sua tradução correta do texto latino, postula ao Criador o perdão de nossas dívidas, "assim como nós perdoamos aos nossos devedores". O segundo receio é que o conflito entre governadores de oposição e o governo central debilite o fervor antiinflacionário desse último. E que o programa de ajuste econômico, já difícil em situações normais, passe a ter um complicador político, como está ocorrendo na Rússia e Indonésia.
Para corrigirmos essa erosão de credibilidade, o Brasil precisa montar um "choque de credibilidade", cujos componentes são conhecidos. Um esforço preliminar seria reformularmos nosso acordo com o FMI, visando à reabertura de linhas de crédito, particularmente as comerciais, indispensáveis para a expansão de exportações. Teríamos ainda que acelerar o ajuste fiscal e retomar o programa de privatizações (inclusive privatizações de conteúdo ideológico, que simbolizem nosso abandono da ideologia estatizante). E temos que iniciar duas grandes reformulações: a de uma mudança sistêmica na Previdência Social, substituindo o modelo de repartição pelo de capitalização individual. E a correção das deformações do pacto federativo que, na Constituição de 1988, descentralizou receitas sem descentralizar funções e responsabilidades.
O temperamento brasileiro é ciclotímico. Da mesma maneira que houve um excesso de otimismo com as transformações induzidas pelo Plano Real, está havendo excesso de pessimismo com as repercussões do novo "realismo cambial". A principal razão de otimismo é que nossa doença é hoje principalmente do setor público. O setor privado, que em última instância é o real motor do desenvolvimento, mantém surpreendente capacidade de sobrevivência e flexibilidade de ajuste.


Roberto Campos, 81, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).


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