São Paulo, Domingo, 28 de Fevereiro de 1999
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JANIO DE FREITAS

Na porta das novidades

Mais do que em fase de recessão econômica, o Brasil já começou a entrar, por força das circunstâncias, em mais um período de sérias modificações na sua fisionomia institucional, nas relações entre governo e população, governo federal e Estados. Um período bem à semelhança do que se passou nos últimos anos do regime militar.
Até onde as modificações irão desta vez, seja no tempo ou nos feitos, é uma incógnita. Mas os sinais estão aí, acumulando-se dia a dia e ganhando sempre melhor nitidez. Nem por isso, no entanto, mais notados em seu sentido mais profundo, senão apenas como fatos isolados e convencionais, que encerram seu significado e alcance em si mesmos.
Os países com grandes deformidades sociais e estrutura econômica desequilibrada não escapam de alterações muito além da economia, quando uma crise atinge seu sistema financeiro ou produtivo. Exemplos recentes dessa vulnerabilidade maior, nenhum dos ditos tigres asiáticos feridos nos últimos dois anos, pela crise dos ""ataques especulativos", escapou de cirurgias plásticas, ainda inacabadas, na relação entre suas instituições e sua população.
O fim do regime militar deveu-se, mais que a qualquer de outros fatores, aos problemas que se seguiram à "segunda crise do petróleo", no começo dos 80, e culminaram com a explosão da dívida externa. A instabilidade da economia, seus reflexos trabalhistas e sociais e, ainda, a paralisia administrava do governo tiveram efeito crescente e decisivo. O empresariado importante influiu em parte dos políticos do regime e na maioria da chamada grande imprensa, acionando uma corrente de opinião pública que se avolumou em torno dos oposicionistas.
A alternativa do regime militar seria voltar à força bruta, mas com perspectivas desastrosas, porque o endurecimento não contava mais com suas bases nas classes alta e média. A crise econômica foi a plataforma de onde o regime militar foi lançado ao lixo da história. É impossível saber que Brasil teria havido sem a crise, mas lembra-se, a propósito, que o plano elaborado em comum pelo Estado-Maior das Forças Armadas e pela Escola Superior de Guerra, como se soube bem antes do fim do regime, era a permanência dos militares no poder até pelo menos o ano 2000.
Apagado depressa esse pesadelo, volta-se a encontrar, nos nossos dias, uma insatisfação que se generaliza e se intensifica como não acontecia desde o começo dos 80. E a crise nem produziu ainda todas as faces da sua nocividade. Até agora o empresariado influente esteve a salvo e parte dele, o que se ocupa com as diferentes manipulações de dinheiro, continua ganhando aqui o que é impensável ganhar em qualquer outro lugar do mundo.
Mas a recessão que agora alcançará grande fatia do empresariado influente vem ao encontro de taxas de desemprego que já estão em recordistas 20% no ABC paulista e nos mal apurados 18% em âmbito nacional. O governo está mais do que imobilizado (e não só por falta de dinheiro). Não lhe bastando a inexistência de investimentos, ocupa-se de cortes. Não mais de obras: de vidas, de alívios, de socorro, de saúde infantil, de futuro para milhões de jovens. Corta verbas da merenda escolar, corta verbas das cestas de alimentos para uma parte dos miseráveis, corta verbas de ensino colegial, corta verbas universitárias, corta verba de serviços hospitalares, corta verbas, corta verbas.
Os sete governadores oposicionistas não parecem notar o que desfecharam, exceto Itamar Franco. Não se dão conta da importância que assumiram, ainda agem com inseguranças e cuidados submissos diante do governo federal. Mas o simples fato de que tivessem a aliança de quase todos os demais para estourar, na reunião com Fernando Henrique, a programação esquema que os minimizaria, seria bastante para indicar-lhes algo mais do que vêm. Mais do que falaram todos, no entanto. Saíram com mais conquistas do que seria esperável. Algumas, até, que o governo recusava com ênfase de posição definitiva.
Essa reunião acabará por impor mudanças importantes na maneira antidemocrática como o poder federal se relaciona com Estados e municípios. E daí vão advir, sem dúvida, melhores possibilidades para administrações estaduais inteligentes e sérias. Como outro efeito, a mesma democratização vai ser induzida, por reflexos dos Estados nos seus parlamentares, nas relações do Executivo com o Legislativo, que tenderá a tornar-se menos subserviente, menos engolidor de centenas de medidas provisórias indigestas e, quem sabe, mais corajoso para proceder a alguns inquéritos moralizantes.
Nada disso eliminará a recessão. Muito ao contrário, será produto dela, mais que de outros fatores. Afinal, os velhos gregos legaram-nos a percepção da dialética e a realidade não teve, até hoje, como a renegar.


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