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Brasil o fez um cardeal de fato
JOAQUIM FALCÃO
especial para a Folha
Antes de João Paulo 2º, o papa
não saía de Roma. Andava carregado no andor. Não viajava. Só
falava italiano e latim. Se comunicava com os fiéis através de bênçãos, encíclicas e missa do galo.
Eleito, João Paulo 2º, tudo mudou. Logo na primeira viagem, jogou-se escada abaixo do avião e
beijou o solo da República Dominicana. Aquela imagem -um
papa beijando o chão- explodiu
nos jornais e TVs do mundo inteiro. Roma finalmente entrava na
era da comunicação. Estava atrasada. Há mais de 30 anos, no Brasil, dom Hélder já descobrira que
sem comunicação não haveria religião. Nem fiéis, bispos ou igreja.
Muitos acreditam que a importância de dom Hélder estava em
sua mensagem: uma messiânica
teologia da libertação, litúrgica e
pastoral, eterna e temporal, alimentadora, ao mesmo tempo, do
corpo e alma. O que é verdade, em
parte. A verdade inteira, porém, é
que dom Hélder uniu esta mensagem à sua enorme capacidade de
comunicação de massa, com os
fiéis, sua audiência. Desta união
nasceu sua importância e poder.
Querem prova? Basta uma. Durante anos, o regime militar proibiu uma linha nos jornais, uma
imagem de televisão sobre dom
Hélder. Censura total. Silêncio absoluto. Ora, só se censura quem
além de mensagem, tem o dom de
comunicá-la. E ao comunicar,
conquista, convence e seduz. A comunicação enquanto catequese.
Dom Hélder tinha este poder e
precisava dos meios de comunicação para exercê-lo. Por isto, aproximou-se no início de "O Cruzeiro", dos "Diários Associados". Depois de Roberto Marinho. E, por
fim, da imprensa internacional,
seduzida por sua opção pelos pobres e pelos direitos humanos.
Dom Hélder era gesto e imagem.
Mesmo sua voz era visual. Argumentava com o corpo, falava com
os olhos, gritava com as mãos. O
leitor está agora, provavelmente,
recordando-se muito mais da
imagem, do que das palavras de
dom Hélder. Enquanto meio, ele
foi a mensagem do amor e a denúncia da injustiça. Assim foi líder. Na festa de seus 85 anos, com
as pernas feridas pela erisipela,
depois de duas horas em pé, o deputado Pedro Eurico lhe ofereceu
uma cadeira. Recusada no ato, e
na recusa, afastou a imagem do líder abatido e da mensagem envelhecida.
Acresçam agora à mensagem
messiânica e a arte de seduzir
multidões, uma incansável capacidade de mobilizar e organizar.
Foi um criador de instituições.
Criou a inocente feira da Providência, a poderosa CNBB e a militante Comissão de Justiça e Paz
do Recife. Por onde andou, comunicou, convenceu, seduziu, mobilizou e organizou. Transformou
ideal, em ação. Esperança, em
possibilidade. Solidão, em união.
Fé, em poder.
Por isto, os poderosos -da igreja e do Estado- lhe respeitavam e
ao mesmo tempo temiam e procuravam neutralizá-lo. Roma não
teve a intenção, nem a coragem
de, por justiça, fazê-lo cardeal.
Mas o Brasil o fez. Cardeal de fato,
do povo, sem anel. Detendo diante
dos padres, bispos e cardeais, e por
que não do próprio papa, a representação legítima dos fiéis, a palavra referência, a importância
maior.
Com dom Hélder, sua teologia
pastoral, sua arte da sedução coletiva e sua obstinação por organizar, nossa Igreja Católica sobreviveu ao século 20.
Joaquim Falcão é professor da Faculdade de
Direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio
de Janeiro) e secretário-geral da Fundação
Roberto Marinho.
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