São Paulo, Sábado, 28 de Agosto de 1999
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ARTIGOS
Foi um profeta em sua terra

FREI BETTO
especial para a Folha

Dom Hélder Câmara até ontem, como diz São Paulo na 1ª Carta aos Coríntios, conhecia Deus "como por um espelho, de modo confuso". Agora, conhece-O "face a face".
Meu primeiro contato com o "arcebispo vermelho" foi em 1961, quando eu era dirigente, em Minas, da Juventude Estudantil Católica e ele, bispo responsável pela Ação Católica Brasileira. No ano seguinte, levou-me para o Rio, para participar da direção nacional da JEC.
Convivemos durante três anos. Ele tinha seu escritório no palácio São Joaquim, no largo da Glória. Do outro lado da praça, sob o Outeiro, ficava a sede da CNBB, da qual dom Hélder foi o fundador e, por muitos anos, secretário-geral. As refeições, ele tomava num botequim da esquina, entre pedreiros e cachaceiros.
Na Igreja Católica, foi o pioneiro do movimento renovador conhecido por "opção pelos pobres". Fundou a Cruzada São Sebastião, empenhado em sua utopia de erradicar as favelas cariocas. Não deu certo. Instalados em apartamentos, os favelados, instigados pela miséria, arrancavam torneiras, encanamentos e instalações elétricas para vender, e muitos sublocavam a moradia em busca de renda.
Dom Hélder Câmara descobriu então que uma só andorinha não faz verão e que a pobreza não resulta da indolência, mas de "estruturas injustas", conforme faria constar, em 1968, no documento episcopal de Medellín.
Durante o Concílio Vaticano 2º (1962-1965), o "bispo dos pobres" promoveu uma articulação entre cardeais e bispos de todo o mundo em favor da inserção da igreja nos setores populares. Propôs ao papa João 23 entregar o Vaticano e suas obras de arte aos cuidados da Unesco, como patrimônio cultural da humanidade, enquanto o papa passaria a morar, na qualidade de bispo de Roma, numa paróquia da capital italiana. Ele sonhava com uma igreja menos imperial e mais parecida com a comunidade dos pescadores da Galiléia.
No Rio, dom Hélder Câmara contava com o apoio de um grupo de leigos, homens e mulheres, conhecido como "a família messejanense" -referência a Messejana, distrito cearense no qual nasceu. A "família" teve o privilégio de receber, em forma de cartas, o diário do arcebispo durante o Concílio, onde ele narra, sem censura, os bastidores do conclave -documento de inestimável valor a ser divulgado após a sua morte.
Dom Hélder nunca cedeu às pressões de quem pretendeu torná-lo, como JK, prefeito do Rio, senador e até presidente da República. Arcebispo de Olinda e Recife, jamais aceitou morar em palácio. Fez dos fundos de uma igreja sua casa e ali ele próprio atendia à porta a quem batia. Com certeza, nenhum brasileiro foi tão biografado. A maioria das obras é assinada por autores estrangeiros, embora ele tenha conseguido o milagre de ser profeta em sua própria terra.
Integralista na juventude, progressista na idade adulta, dom Hélder sempre surpreendeu a quem quis enquadrá-lo em estereótipos. Sob a ditadura militar, dialogou com os generais que o censuravam na mídia e socorreu os perseguidos e os presos políticos na defesa intransigente dos direitos humanos.
Sua fama no exterior -entre brasileiros, só comparável à de Pelé- levou a Polícia Federal, sob o regime militar, a oferecer-lhe segurança. Brasília temia que ele sofresse um atentado. Dom Helder disse aos policiais: "Não preciso dos senhores. Já tenho quem cuida de minha segurança". Os agentes pediram os nomes. Precisavam de registro nos órgãos oficiais. O bispo não se fez de rogado: "São o Pai, o Filho e o Espírito Santo".
Certa noite, familiares aflitos procuraram dom Hélder. Um homem tinha sido preso e estava sendo espancado na delegacia. O prelado ligou para o delegado: "Aqui é dom Hélder. Está preso aí o meu irmão". O policial levou um susto: "Seu irmão, eminência?" Dom Hélder explicou: "Apesar da diferença de nomes, somos filhos do mesmo pai". O delegado desmanchou-se em desculpas e mandou soltar o preso irmão do arcebispo. Filhos do mesmo Pai...
Assim era dom Hélder, um homem evangélico, simples, sem firulas episcopais. E como tinha muita fé, jamais conheceu o medo. E amou de todo o coração essa igreja que tanto quis ver renovada e, no entanto, jamais concedeu-lhe o merecido título de cardeal.
Faltou este homem na galeria do Prêmio Nobel da Paz. Com certeza, o futuro cumprirá a justiça de entronizá-lo entre aqueles que são venerados como santos.


Frei Betto é frade dominicano e escritor, autor do romance "Entre Todos os Homens" (Ática), entre outros livros.

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