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ARTIGOS
Foi um profeta em sua terra
FREI BETTO
especial para a Folha
Dom Hélder Câmara até ontem, como diz São Paulo na 1ª
Carta aos Coríntios, conhecia
Deus "como por um espelho, de
modo confuso". Agora, conhece-O
"face a face".
Meu primeiro contato com o
"arcebispo vermelho" foi em 1961,
quando eu era dirigente, em Minas, da Juventude Estudantil Católica e ele, bispo responsável pela
Ação Católica Brasileira. No ano
seguinte, levou-me para o Rio, para participar da direção nacional
da JEC.
Convivemos durante três anos.
Ele tinha seu escritório no palácio
São Joaquim, no largo da Glória.
Do outro lado da praça, sob o Outeiro, ficava a sede da CNBB, da
qual dom Hélder foi o fundador e,
por muitos anos, secretário-geral.
As refeições, ele tomava num botequim da esquina, entre pedreiros e cachaceiros.
Na Igreja Católica, foi o pioneiro do movimento renovador conhecido por "opção pelos pobres".
Fundou a Cruzada São Sebastião,
empenhado em sua utopia de erradicar as favelas cariocas. Não
deu certo. Instalados em apartamentos, os favelados, instigados
pela miséria, arrancavam torneiras, encanamentos e instalações
elétricas para vender, e muitos sublocavam a moradia em busca de
renda.
Dom Hélder Câmara descobriu
então que uma só andorinha não
faz verão e que a pobreza não resulta da indolência, mas de "estruturas injustas", conforme faria
constar, em 1968, no documento
episcopal de Medellín.
Durante o Concílio Vaticano 2º
(1962-1965), o "bispo dos pobres"
promoveu uma articulação entre
cardeais e bispos de todo o mundo
em favor da inserção da igreja nos
setores populares. Propôs ao papa
João 23 entregar o Vaticano e suas
obras de arte aos cuidados da
Unesco, como patrimônio cultural
da humanidade, enquanto o papa
passaria a morar, na qualidade
de bispo de Roma, numa paróquia da capital italiana. Ele sonhava com uma igreja menos imperial e mais parecida com a comunidade dos pescadores da Galiléia.
No Rio, dom Hélder Câmara
contava com o apoio de um grupo
de leigos, homens e mulheres, conhecido como "a família messejanense" -referência a Messejana,
distrito cearense no qual nasceu.
A "família" teve o privilégio de receber, em forma de cartas, o diário
do arcebispo durante o Concílio,
onde ele narra, sem censura, os
bastidores do conclave -documento de inestimável valor a ser
divulgado após a sua morte.
Dom Hélder nunca cedeu às
pressões de quem pretendeu torná-lo, como JK, prefeito do Rio, senador e até presidente da República. Arcebispo de Olinda e Recife, jamais aceitou morar em palácio. Fez dos fundos de uma igreja
sua casa e ali ele próprio atendia à
porta a quem batia. Com certeza,
nenhum brasileiro foi tão biografado. A maioria das obras é assinada por autores estrangeiros,
embora ele tenha conseguido o
milagre de ser profeta em sua própria terra.
Integralista na juventude, progressista na idade adulta, dom
Hélder sempre surpreendeu a
quem quis enquadrá-lo em estereótipos. Sob a ditadura militar,
dialogou com os generais que o
censuravam na mídia e socorreu
os perseguidos e os presos políticos
na defesa intransigente dos direitos humanos.
Sua fama no exterior -entre
brasileiros, só comparável à de Pelé- levou a Polícia Federal, sob o
regime militar, a oferecer-lhe segurança. Brasília temia que ele
sofresse um atentado. Dom Helder disse aos policiais: "Não preciso dos senhores. Já tenho quem
cuida de minha segurança". Os
agentes pediram os nomes. Precisavam de registro nos órgãos oficiais. O bispo não se fez de rogado:
"São o Pai, o Filho e o Espírito
Santo".
Certa noite, familiares aflitos
procuraram dom Hélder. Um homem tinha sido preso e estava
sendo espancado na delegacia. O
prelado ligou para o delegado:
"Aqui é dom Hélder. Está preso aí
o meu irmão". O policial levou um
susto: "Seu irmão, eminência?"
Dom Hélder explicou: "Apesar da
diferença de nomes, somos filhos
do mesmo pai". O delegado desmanchou-se em desculpas e mandou soltar o preso irmão do arcebispo. Filhos do mesmo Pai...
Assim era dom Hélder, um homem evangélico, simples, sem firulas episcopais. E como tinha
muita fé, jamais conheceu o medo. E amou de todo o coração essa
igreja que tanto quis ver renovada
e, no entanto, jamais concedeu-lhe o merecido título de cardeal.
Faltou este homem na galeria
do Prêmio Nobel da Paz. Com certeza, o futuro cumprirá a justiça
de entronizá-lo entre aqueles que
são venerados como santos.
Frei Betto é frade dominicano e escritor, autor do romance "Entre Todos os Homens"
(Ática), entre outros livros.
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