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INCONSCIENTE ELEITORAL
Medo, ganância, contágio
MARCELO COELHO
Pelo que me lembro, nos últimos oito anos as autoridades
brasileiras se esforçaram por tratar o mercado a pão-de-ló. Só recentemente, na última ou na penúltima crise cambial, é que o
presidente Fernando Henrique
emitiu declarações mais contundentes sobre a suposta irracionalidade dos especuladores.
Agora, foi a vez do ministro
Malan. Acusou o mercado (ou
melhor, "os mercados", parece
que o plural fica mais bonito) de
várias coisas. Haveria uma combinação, disse ele, de ganância,
"às vezes uma ganância infecciosa", de medo, "às vezes um medo
contagioso", e de ignorância, mas
esta quase nunca contagiosa: "felizmente, um pequeno nível de ignorância, porque existem analistas muito sofisticados entre os
participantes do mercado".
Interessante que as frases de
Malan tenham sido pronunciadas enquanto se revelavam os esforços de representantes do PT no
sentido de estreitar contatos com
banqueiros e analistas de mercado. Nas últimas semanas, petistas
como José Dirceu, Aloizio Mercadante e Antônio Palocci têm se
encontrado com figuras do cacife
de Lázaro Brandão, Olavo Setúbal e José Safra.
Trata-se de administrar a
"transição". Com isso, parece haver um leve sabor de vingança na
fraseologia de Malan e FHC.
Quem passou anos seguindo a
cartilha do consenso de Washington tende a desfrutar, agora, de
um sensação de desafogo verbal;
despedindo-se do poder, as atuais
autoridades parecem mais arejadas e críticas.
E que os petistas agora zelem
pelo superávit fiscal. O atual governo não diz, como Luís 14,
"après moi, le déluge". Murmura,
com os lábios esboçando um risinho eclesiástico, "après moi, la
même chose".
Claro que nunca foi necessário
ser petista para fazer críticas ao
mercado. George Soros, o megaespeculador, é candente em suas denúncias à irracionalidade do sistema. E Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve, é quem
inspira as sentenças de nosso ministro da Fazenda.
Ganância infecciosa. Medo contagioso. Ignorância em pequeno
nível. Na tripla fórmula de Malan, talvez não exista apenas uma
crítica a esses seus súbitos adversários, "os mercados". De um
ponto de vista mais ortodoxo, palavras como contágio, infecção e
(pequena) ignorância bem que
poderiam referir-se aos encontros, conversas e até apertos de
mão entre banqueiros e formuladores do programa petista.
É como se circulassem no ar,
sem dono que as reivindique, tanto a idéia de que dinheiro é uma
coisa suja, como também a convicção de que candidatos de esquerda são assustadores, quando
não ignorantes.
Vai chegando, para o atual governo, a hora de lavar as mãos. Os
adeptos da candidatura Serra
têm encontrado até agora poucas
razões para otimismo; nos círculos oficiais, é como se já houvesse
uma certa conformidade com um
eventual governo Lula.
Ao menos, para interpretar novamente a frase de Malan, é como
se o governo dissesse estar livre de
ganância, medo e ignorância com
relação a uma vitória da oposição: "Bem, não temos mais esse tipo de sentimento; quem tem é o
mercado".
Ou melhor, os mercados. O plural torna tudo mais vago, mais diplomático e prudente. Sugere que
se adotou um ponto de vista externo, objetivo, mas é como se
houvesse um "nós", uma primeira pessoa incluída no raciocínio.
Para além de possíveis ou impossíveis mudanças de governo, é esse "nós" quem parece sempre afirmar: "Continuamos no poder".
MARCELO COELHO, colunista da Folha,
escreve aos sábados
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