São Paulo, sábado, 28 de setembro de 2002

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INCONSCIENTE ELEITORAL

Medo, ganância, contágio

MARCELO COELHO

Pelo que me lembro, nos últimos oito anos as autoridades brasileiras se esforçaram por tratar o mercado a pão-de-ló. Só recentemente, na última ou na penúltima crise cambial, é que o presidente Fernando Henrique emitiu declarações mais contundentes sobre a suposta irracionalidade dos especuladores.
Agora, foi a vez do ministro Malan. Acusou o mercado (ou melhor, "os mercados", parece que o plural fica mais bonito) de várias coisas. Haveria uma combinação, disse ele, de ganância, "às vezes uma ganância infecciosa", de medo, "às vezes um medo contagioso", e de ignorância, mas esta quase nunca contagiosa: "felizmente, um pequeno nível de ignorância, porque existem analistas muito sofisticados entre os participantes do mercado".
Interessante que as frases de Malan tenham sido pronunciadas enquanto se revelavam os esforços de representantes do PT no sentido de estreitar contatos com banqueiros e analistas de mercado. Nas últimas semanas, petistas como José Dirceu, Aloizio Mercadante e Antônio Palocci têm se encontrado com figuras do cacife de Lázaro Brandão, Olavo Setúbal e José Safra.
Trata-se de administrar a "transição". Com isso, parece haver um leve sabor de vingança na fraseologia de Malan e FHC. Quem passou anos seguindo a cartilha do consenso de Washington tende a desfrutar, agora, de um sensação de desafogo verbal; despedindo-se do poder, as atuais autoridades parecem mais arejadas e críticas.
E que os petistas agora zelem pelo superávit fiscal. O atual governo não diz, como Luís 14, "après moi, le déluge". Murmura, com os lábios esboçando um risinho eclesiástico, "après moi, la même chose".
Claro que nunca foi necessário ser petista para fazer críticas ao mercado. George Soros, o megaespeculador, é candente em suas denúncias à irracionalidade do sistema. E Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve, é quem inspira as sentenças de nosso ministro da Fazenda.
Ganância infecciosa. Medo contagioso. Ignorância em pequeno nível. Na tripla fórmula de Malan, talvez não exista apenas uma crítica a esses seus súbitos adversários, "os mercados". De um ponto de vista mais ortodoxo, palavras como contágio, infecção e (pequena) ignorância bem que poderiam referir-se aos encontros, conversas e até apertos de mão entre banqueiros e formuladores do programa petista.
É como se circulassem no ar, sem dono que as reivindique, tanto a idéia de que dinheiro é uma coisa suja, como também a convicção de que candidatos de esquerda são assustadores, quando não ignorantes.
Vai chegando, para o atual governo, a hora de lavar as mãos. Os adeptos da candidatura Serra têm encontrado até agora poucas razões para otimismo; nos círculos oficiais, é como se já houvesse uma certa conformidade com um eventual governo Lula.
Ao menos, para interpretar novamente a frase de Malan, é como se o governo dissesse estar livre de ganância, medo e ignorância com relação a uma vitória da oposição: "Bem, não temos mais esse tipo de sentimento; quem tem é o mercado".
Ou melhor, os mercados. O plural torna tudo mais vago, mais diplomático e prudente. Sugere que se adotou um ponto de vista externo, objetivo, mas é como se houvesse um "nós", uma primeira pessoa incluída no raciocínio. Para além de possíveis ou impossíveis mudanças de governo, é esse "nós" quem parece sempre afirmar: "Continuamos no poder".


MARCELO COELHO, colunista da Folha, escreve aos sábados


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