São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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ARQUIVOS DO NAZISTA

Em carta, alemão citou desmonte de evento da UNE como modo de evitar avanço do comunismo entre jovens

Mengele elogiou repressão da ditadura

ANDRÉA MICHAEL
ANA FLOR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Numa reflexão sobre os problemas da "juventude de hoje", feita no final dos anos 60, o médico nazista Josef Mengele diz que o comunismo encontrou no movimento estudantil o terreno perfeito para semear "a sua agitação". Para ele, uma geração de estudantes ""sem tradição" ou ""estilo" poderia ser disciplinada por meio da força -e citou a repressão da ditadura militar brasileira ao congresso da UNE em 1968.
Não fosse isso, segundo Mengele, as mudanças em curso na sociedade não se dariam num processo "revolucionário", mas "sem tumultos e com a manutenção do respeito e da disciplina".
Na carta, um ensaio escrito em abril de 1969 e endereçado ao seu principal interlocutor na época, o austríaco Wolfgang Gerhard, Mengele cita como referência no combate à "problemática da sociedade estudantil" uma receita usada no regime militar. Dá como exemplo de sucesso da fórmula -que poderia ser usada mundialmente- o desmonte do 30º Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), em outubro de 1968, em Ibiúna (SP).
Na ocasião, os militares prenderam os 1.240 participantes do congresso, entre os quais o ministro José Dirceu (Casa Civil) e o prefeito eleito de São Paulo, José Serra.
"Nos regimes mais ou menos autoritários, esses problemas estudantis foram resolvidos de forma relativamente rápida e satisfatória [...]. Com facilidade, agentes pagos poderiam se disfarçar como estudantes profissionais em todos os países e desmascarar os cabeças dos bandos. Assim, pôde ser desmontado por aqui [no Brasil] um congresso de líderes estudantis que se reuniram (e pernoitaram) secretamente numa fazenda [...]". E conclui: "Desde lá, não há mais agitações estudantis".
A carta integra um conjunto de 85 documentos escritos ou datilografados em alemão e apreendidos pela Polícia Federal em 1985.


"Com facilidade, agentes poderiam se disfarçar como estudantes em todos os países e desmascarar os cabeças dos bandos [dos movimentos estudantis]"

A investigação conduzida na época acabou por confirmar que uma ossada enterrada no cemitério do Embu (Grande São Paulo) realmente era a do médico nazista que viveu foragido por 34 anos -19 no Brasil, onde morreu afogado na praia de Bertioga (SP) em 7 de fevereiro de 1979.
Conforme a Folha revelou no domingo passado, os pertences de Mengele foram esquecidos nos arquivos da Superintendência da PF em São Paulo e redescobertos no final de outubro pela equipe dos delegados Euclydes da Silva Filho e Wenderson Braz Gomes, em meio a uma auditoria nos inquéritos em curso no órgão.
Na carta, datilografada em uma máquina Kochs Adlernahmaschinen Werke modelo ABC, encontrada pela PF entre os seus pertences, Mengele refuta as teses de Gerhard segundo as quais a juventude "quer achar um caminho próprio! Porque, aos olhos deles, os velhos falharam". "No que falharam?", pergunta.
Ele mesmo responde: "A guerra perdida não pode ser motivo, porque também a juventude de nações vencedoras, por exemplo, na França, também têm, por pressuposto, os mesmos problemas de achar o caminho".
No pensamento de Mengele, a falha da geração que viveu o pós-guerra foi não manter a disciplina necessária a impedir o triunfo da rasa produção cultural e científica desenvolvida pelos seus descendentes e preservar as tradições, cuja ausência determinaria o ocaso de um povo -exemplos: "Egito, Grécia e Roma".
Afirma que "o progresso tecnológico não faz mais do que modificar velhos meios de auxílio à vida em novas formas [...] nem sempre de forma vantajosa para a saúde humana". "A literatura moderna, com todas as suas artes de latrina: filme, TV, teatro etc. é, com efeito, essencialmente "pensamento de vísceras'". A arquitetura somente esconde "a incapacidade de construir de forma bonita, atrás da assim chamada utilidade e adequabilidade. O esforço mais honesto talvez vem da música", alusão da qual exclui as composições para entretimento e dançantes.
Com isso, Mengele se mostrava fiel aos gostos culturais e estéticos do nazismo, doutrina com que Adolf Hitler comandou a Alemanha entre 1933 e 1945. O nazismo preconizava uma ""pureza" estética que emulasse a antigüidade clássica, e fazia com freqüência a denúncia da arte que considerava ""degenerada" -notadamente, a pintura moderna com expoentes judaicos ou eslavos, raças inferiores a seus olhos.
A arquitetura clássica, elogiada indiretamente por Mengele, era a obsessão de Hitler. Pintor frustrado, ele sempre repetia que gostaria de ter sido arquiteto. Uma de suas últimas fotos o mostra no bunker em Berlim, sob bombardeio soviético, examinando maquetes de obras que havia planejado para Linz, cidade austríaca onde passou parte da infância.
Afirma o médico nazista: "Os jovens são tão responsáveis pela miséria intelectual de nossa época quanto os velhos, sim, talvez esses bem mais, porque toleraram que certos e imprescindíveis princípios de uma ordem já experimentada fossem renunciados em favor de uma concepção de vida leviana, ligada à contemporaneidade, mais primitiva e superficial".

Comunicação de massa
O grande vilão da "miséria cultural", conforme aponta Mengele a Gerhard, são os meios de comunicação de massa, que, ao pasteurizarem e unificarem as informações, retardariam o espírito crítico e a capacidade intelectual das pessoas (leia na próxima página).
Principais vítimas dos meios de comunicação de massa, os jovens seriam terreno mais propício à germinação do comunismo do que os trabalhadores -preocupados que estavam com a sobrevivência da própria família.
Há, porém, no que diz respeito aos trabalhadores, uma ressalva: "A maioria dos adeptos dos partidos comunistas na Itália e na França também não são os trabalhadores qualificados, mas aqueles [que aderiram ao comunismo] são proletários de colarinho que possuem a formação de quem mal sabe ler e escrever e que, na forma de servos de mesas de escritórios e funcionários inferiores, foram criados massivamente pela sociedade industrial".
Como um dos alvos para destilar suas críticas, escolhe o líder estudantil alemão Rudolf Dutschke, vítima de um atentado a tiros que deixou seqüelas físicas e psíquicas mais tarde responsáveis por sua morte.
Sobre o ídolo cultuado na Alemanha ainda hoje, Mengele afirma estar convencido de que da "cabeça cabeluda e barbuda [de Dutschke] não pode sair nenhuma idéia com a qual um estudante alemão íntegro poderia entusiasmar-se".


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