São Paulo, domingo, 29 de maio de 2005

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ARTIGO

Um início pragmático

CARLOS LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sessenta anos após a formação das Nações Unidas, a Organização encontra-se em um momento de reforma sem precedentes. O início das comemorações do aniversário da ONU coincidirá com a celebração da Cúpula de Setembro, que fará um balanço do progresso obtido na implementação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) desde 2000.
Em 2002, Kofi Annan comissionou o Projeto do Milênio com o objetivo de recomendar um plano de ação para atingir os ODM mundialmente até 2015. O relatório desse Projeto, "Investindo no Desenvolvimento: um plano prático para atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio", foi apresentado ao Secretário-Geral no início do 2005.
No ano seguinte, consciente de que as Nações Unidas tinham chegado a um momento decisivo, o Secretário-Geral pediu a instituição de um Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança. O momento foi avaliado como uma oportunidade para que as Nações Unidas se adaptassem às novas ameaças, caso contrário, poderiam erodir no âmbito de tanta discórdia entre os Estados e unilateralismo. Nesse contexto, o Painel produziu o documento "Um mundo mais seguro: nossa responsabilidade compartilhada" que propõe uma nova visão da segurança coletiva para o século 21.
Esses dois estudos deram os insumos necessários para o relatório do Secretário-Geral "Um conceito mais amplo da liberdade". Nesse documento, Kofi Annan apresentou uma série de compromissos políticos e reformas institucionais para serem assumidos pelos líderes mundiais na Cúpula prevista para Setembro. O Secretário-Geral pede ação nas áreas de desenvolvimento, segurança e direitos humanos. Indica, ainda, as mudanças necessárias, no âmbito da Organização, para garantir que se avance, com igual determinação, nessas três linhas de atuação. As propostas defendidas são absolutamente alcançáveis se obtiverem o apoio e compromisso dos líderes internacionais.
O Secretário-Geral espera que "Um conceito mais amplo de liberdade" simbolize um novo início, tanto para o sistema internacional como para a própria ONU. O título do relatório é retirado da Carta das Nações Unidas que defende a necessidade de "promover o progresso social e a melhoria das condições de vida no âmbito da mais ampla liberdade".
Para Kofi Annan, isso implica que o desenvolvimento é possível apenas em condições de liberdade e que as pessoas só poderão se beneficiar da liberdade política no momento em que tiverem, pelo menos, a oportunidade de alcançar condições dignas de vida. Ou seja, as pessoas serão realmente livres quando não estiverem ameaçadas pela violência e a guerra e se os seus direitos fundamentais e dignidade estiverem assegurados por lei. Portanto, os direitos humanos, o desenvolvimento e a segurança são mutuamente interdependentes e, quando tratados de forma relacionada, contribuem para uma liberdade mais ampla.
Nesse sentido, o Relatório do Secretário-Geral está dividido em quatro partes. A primeira faz referência aos desafios do desenvolvimento. Em 2005, uma parceria global precisa ser plenamente estabelecida, em coerência com os compromissos assumidos, em 2002, tanto na Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento, em Monterrey, quanto na Cúpula sobre Desenvolvimento Sustentável de Joanesburgo. Esse acordo global deve ser motivado pela responsabilidade coletiva entre os países em desenvolvimento e os desenvolvidos. Os primeiros têm de fortalecer a governabilidade, combater a corrupção e estabelecer planos nacionais de luta contra a pobreza. Os segundos devem incrementar a ajuda para o desenvolvimento, aliviar a dívida mais amplamente, e estabelecer um comércio orientado para o desenvolvimento dos países mais pobres.
A segunda parte do documento trata as questões relativas à violência e à segurança. As ameaças à paz, próprias do século 21, são vistas não apenas sob a ótica convencional das guerras e conflitos, pois incluem também o terrorismo, as armas de destruição em massa e a violência civil.
Sobre esse tema, o Secretário-Geral propõe a criação da Comissão de Nações Unidas para a Construção da Paz, um órgão estabelecido dentro do Secretariado e que ajudaria aos países em transição. Os Estados devem ainda, acordar sobre uma definição clara e consensual sobre o conceito de terrorismo.
Uma outra área de relevância é a dos direitos humanos. Nas últimas seis décadas, o marco normativo sobre os direitos humanos tem avançado consideravelmente, no entanto, a sua aplicação precisa ser fortalecida. Devemos passar da era da legislação à era da implementação. Nesse sentido, o Relatório de Kofi Annan propõe a substituição da Comissão de Direitos Humanos por um Conselho de Direitos Humanos, com um número menor de membros a serem escolhidos pela maioria de dois terços da Assembléia-Geral.
Além disso, o Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos deve contar com maiores recursos humanos e financeiros para desempenhar um papel mais ativo nas deliberações do Conselho de Segurança e na Comissão de Construção da Paz. Ademais, deverá ser criado um Fundo para a Democracia que proveja assistência aos países em transição para a democracia.
A quarta parte do Relatório aborda a necessidade de adaptação da ONU às circunstâncias do século 21. Conforme afirma o Secretário-Geral, a Organização será mais eficaz se o Secretariado for mais flexível e transparente às prioridades dos Estados Membros e aos interesses dos cidadãos. O Conselho Econômico e Social deve ser reformado para garantir o progresso efetivo na agenda de desenvolvimento das Nações Unidas; para constituir-se em um fórum de cooperação para o desenvolvimento de alto nível; e para aconselhar aos diversos atores intergovernamentais na área econômica e social. Quanto ao Conselho de Segurança, o Secretário-Geral defende uma maior representação da comunidade internacional como um todo e maior coerência com a realidade geopolítica atual.
O Relatório "Um conceito mais amplo de liberdade" se insere em um contexto internacional em que, pela primeira vez na história, existe uma visão comum sobre desenvolvimento, pautada pela Declaração do Milênio e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e pela necessidade de assumir respostas conjuntas às ameaças e desafios que afrontam os países. O Relatório não é um pacote de medidas utópicas, mas um conjunto de compromissos políticos e reformas institucionais mundiais factíveis.
A Organização das Nações Unidas é, nesse sentido, o fórum adequado para que os países soberanos possam acordar sobre estratégias conjuntas a problemas comuns. A ONU garante ainda os instrumentos necessários para colocar essas estratégias em prática. Quase sessenta anos após a criação das Nações Unidas, os valores éticos que a criaram continuam plenamente vigentes. A quatro meses da celebração da Cúpula de Setembro, é o momento de assegurar a implementação dos compromissos da Declaração do Milênio e pactuar sobre as reformas necessárias para atingir "In Larger Freedom". Temos em nossas mãos a possibilidade de renovar as ações pela paz, desenvolvimento e direitos humanos. De um início pragmático podem surgir as grandes mudanças do mundo.


Carlos Lopes é representante da ONU e do PNUD no Brasil

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