São Paulo, sábado, 29 de junho de 2002

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Lula quer novo Pacto de Moncloa e se diz cansado de "denuncismo"

Petista toma acordo social espanhol dos anos 70 como modelo e culpa política de FHC pela crise econômica

PLÍNIO FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL

O candidato do PT à Presidência tentará convencer o eleitorado nos próximos três meses de que o "efeito Lula" que apavora os mercados financeiros tem dupla falha de interpretação: não existiriam nem o efeito nem o Lula anticapitalista que temem.
Para Luiz Inácio Lula da Silva, 56, pela quarta vez candidato do PT à Presidência, o efeito não existe porque fatores internacionais mais amplos, como as dificuldades da economia norte-americana, é que causam abalos num país que aprofundou a sua vulnerabilidade externa em razões da política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso. "Risco Lula é terrorismo que pode se voltar contra o governo".
O Lula anticapitalista também não existiria mais. Amadurecido, diz-se habilitado a fazer as reformas de que o país necessita por meio de fóruns nacionais que produzam propostas consensuais. Acena em direção às elites: "Pela primeira vez na história, um trabalhador lidera uma aliança, tendo como vice um empresário bem-sucedido. O que quero? Simbolizar o pacto social que tanto o Fernando Henrique Cardoso falava em 1982, inspirado no Pacto de Moncloa (acordo firmado em 1977 entre as facções políticas da Espanha para assegurar a transição para a democracia)", diz.
Lula evita endemoninhar até mesmo o FMI (Fundo Monetário Internacional), quando questionado se recorreria a ele como alternativa para combater a especulação: "Se precisar, vamos tomar a decisão de acordo com a necessidade. Não dá para antever se vai precisar ou não", desconversa.
Afirma que vai desonerar e estimular a exportação como forma de combate à crise e nega a possibilidade de, sob sua administração, o Brasil repetir a Argentina e ter de chegar ao cúmulo de reter depósitos bancários para evitar o colapso econômico.
Na segunda-feira, foi esse Lula conciliador que se reuniu por uma hora e meia com a nova embaixadora dos EUA no Brasil, Donna Hrinak, no escritório de um amigo do petista. Lula saiu da conversa dizendo que Hrinak é simpática e que ouviu dela que os preconceitos contra seu nome vêm de quem não o conhece.
O petista parece calmo, mesmo com o PT enfrentando uma série de acusações de irregularidades em uma administração que considerava modelo. "Estou de saco cheio com o denuncismo neste país", afirma o candidato do partido que, para o mal ou para o bem, mais o estimulou.
Risonho, Lula será ungido candidato hoje preocupado com o marketing e com a segurança pessoal. Uma medida que simboliza isso foi a decisão de optar preferencialmente por viajar, daqui por diante, em aviões de carreira comuns. É bom para o marketing em uma campanha na qual o financiamento tornou-se preocupante. E é mais difícil que um avião comercial "caia misteriosamente" do que um simples jatinho de candidato, diz reservadamente. Leia a seguir os principais trechos da entrevista à Folha.

Folha - O Brasil vive um crise econômica que em parte é atribuída ao "efeito Lula". Que riscos o sr. representa para o país?
Luiz Inácio Lula da Silva
- Acho que aí tem um pouco de má-fé e posição ideológica. Outro dia saiu na Folha notícia dizendo que o dólar caiu porque o [tucano José" Serra subiu em uma pesquisa. Cinco dias antes, o Armínio Fraga [presidente do Banco Central" havia oferecido ao mercado títulos com vencimento em outubro, portanto ainda no governo FHC, e o mercado não quis, numa demonstração de que o mercado está pouco preocupado em quem será o presidente da República. O que não está sendo dito é que o governo brincou com coisa séria: tentar ganhar um votinho à custa do terrorismo econômico numa economia fragilizada como a nossa é delicado. Há uma série de coisas assustando o mercado antes do processo eleitoral.
A economia dos EUA está em crise. O dólar se desvalorizou quase 11% em relação ao euro. Muitas empresas americanas, grandes corporações que maquiaram os balanços, estão assustando os investidores de fundos. "Risco Lula" é terrorismo que pode se voltar contra o governo. Até 31 de dezembro, goste ou não goste, é o governo que terá de arcar com a responsabilidade da economia.

Folha - Supondo que o sr. vença as eleições, a crise aumente e que seja obrigado a medidas drásticas. O sr. aceitaria a sugestão de algo como o "corralito" argentino (limitação dos saques bancários)?
Lula -
Isto aqui não é uma estrebaria. É um país. Não é uma pocilga. Não vai ter "corralito" coisa nenhuma. O que vamos fazer é pegar cada centavo disponível -seja do Orçamento, do BNDES, da Caixa Econômica e do Banco do Brasil- e transformar a capacidade de investimento em geração de emprego. Estamos propondo a criação de uma Secretaria Especial de Comércio Exterior, ligada diretamente à Presidência, e uma política ousada de venda de produtos brasileiros. O Brasil é um país com potencial produtivo. Os agronegócios tiveram um superávit na balança comercial de quase R$ 18, 5 bilhões no ano passado. Podem crescer mais.

Folha - Se o país precisar, em decorrência da crise financeira, de recursos do Fundo Monetário Internacional, o sr. aceitaria pedir novos empréstimos?
Lula -
É preciso acabar com esta lógica perversa de ficar dependendo do FMI. Um país não cresce pela capacidade de tomar dinheiro emprestado, cresce pela capacidade de produzir. Esse é o único caminho. Tentar criar espaço para uma política de exportação que gere divisas. E tentar evitar o máximo possível pedir dinheiro emprestado.

Folha - Mas se o país precisar para combater a especulação?
Lula
- Se precisar, vamos tomar a decisão de acordo com a necessidade. Não dá para antever se vai precisar ou não. O Brasil é cotista do FMI. Meu problema com o FMI não é o fato de o Brasil ter direito de recorrer a ele ou não. Gostaria que nunca recorresse. O problema é que o FMI não pode impor ao Brasil, ou a qualquer país do mundo, o seu modelo de ajuste fiscal e desenvolvimento. Não é o FMI que tem de dizer se o governo vai investir, por exemplo, em hidrelétrica ou não. São as nossas necessidades de crescimento que vão dizer se faremos ou não. Essa é a divergência.

Folha - O sr. defende o que chama de "novo contrato social", outra expressão para o "pacto social" do final da década de 80. Naquela época, o sr. dizia que pacto social era um pacto de ilusões. Não é uma ilusão do sr. achar que esse pacto possa vir a ser feito agora?
Lula
- O pacto social só é possível se os interlocutores forem sérios. Estou convencido de que as reformas que o Brasil precisa -a tributária, a política, a agrária, a trabalhista- têm de vir por entendimento. Queremos construir as principais propostas de reforma ouvindo a sociedade e depois levando ao Congresso. Será mais produtivo e provável a aprovação.

Folha - Em todas essas reformas, devido aos imensos interesses contrariados, o governo FHC fracassou, apesar de ter 70% do Congresso a seu favor. Por que daria certo com o sr., que deve ter uma base de apoio menor se eleito?
Lula -
Porque o Fernando Henrique não quis fazer as reformas. Se é verdade que todos os segmentos da sociedade querem as reformas, por que não aconteceram? FHC, o único presidente cientista político da história [na realidade, sociólogo", não preparou nem sequer a reforma política. O governo se acomodou com o sucesso do real e a aprovação da reeleição. Não se preocupou em fazer outras coisas.

Folha - Numa reunião recente, o sr. foi cobrado por fazer a aliança do PT com o PL até por notáveis ligados ao partido como Antonio Candido, Marilena Chaui e Paul Singer. Se nem eles entenderam suas razões para a aliança, por que o eleitor entenderia?
Lula
- Não cobraram. Fomos nós que convocamos uma reunião para dizer o que o PT pensa sobre a política de alianças. Tenho respeito profundo por Antonio Candido, Marilena Chaui, Francisco de Oliveira. Eles são intelectuais. Não têm de pensar eleitoralmente. Pensam partidária e ideologicamente. Mas eu perdi três eleições. Tenho de pensar o que é mais conveniente do ponto de vista eleitoral, sem abrir mão de minhas convicções.
Para mim, a figura do José Alencar é muito importante por um simbolismo. Pela primeira vez na história do Brasil, um trabalhador lidera uma aliança, tendo como vice um empresário bem-sucedido. O que quero com isso? Simbolizar o pacto social que tanto o Fernando Henrique Cardoso falava em 1982, inspirado no Pacto de Moncloa. Mas ele não fez um gesto, uma reunião, não moveu uma vírgula para fazer um pacto.

Folha - O problema é que, quando o sr. defende o Quércia e aceita a campanha em seu favor do Maluf, passa a imagem de que transige da defesa de posições históricas do PT por oportunismo eleitoral.
Lula
- Quem escolhe o Lula, o Quércia ou o Maluf é o eleitor. Temos de trabalhar com muita força para melhorar a compreensão da política pelo eleitor, mas um candidato não deve julgar o outro. O eleitor é quem tem de julgar. Confesso a você que estou de saco cheio com o "denuncismo" neste país. Achincalha-se a vida da pessoa e não acontece nada.

Folha - O PT não tem sua parcela de culpa nesse "denuncismo"?
Lula
- É bem possível que tenha. Só é possível denunciar alguém com prova. O ônus da prova tem de ser do acusador. Acusou, prova. O Ministério Público presta um serviço ultra-relevante. Mas acho grave que muitas vezes dê mais atenção à imprensa do que ao conteúdo do processo. Aí começa a deformação.

Folha - O sr. agora seria a favor da Lei da Mordaça, que determina como sigilosas as informações de inquéritos em andamento?
Lula -
Não. Sou a favor da lei da responsabilidade. Isso evita especulação desnecessária e condenação antes do julgamento.

Folha - O PT tem um projeto que prevê financiamento público de campanha e divulgação mensal dos doadores. Então por que não divulga seus financiadores desde já em nome da transparência?
Lula
- Não sei se é uma questão de transparência ou de inibir o doador. Possivelmente há quem queira dar dinheiro para o PT e tenha medo de o governo saber. Com o poder de pressão que o governo tem, chama um empresário e cobra: está dando dinheiro para o PT também? O financiamento público é a forma mais barata e honesta de fazer campanha.

Folha - O sr. não acha que há problemas éticos e administrativos na relação da Prefeitura de Santo André, tida como modelo pelo PT, e as empresas prestadoras de serviço?
Lula -
Não sei se há. Se há indícios, vamos aguardar com cuidado as provas. Uma denúncia a três meses das eleições, na qual o principal acusador é irmão do prefeito, mas ligado a uma empresa ligada ao PTB, nosso arquiinimigo em Santo André, deixa você de orelha em pé. Mas não devemos medir esforços para apurar. Se houver culpados, que paguem. Se for inocente, que ganhe atestado de idoneidade.
Estou cansado de ver pessoas passarem semanas e semanas sendo achincalhadas pela imprensa por corrupção e depois, quando provada a inocência delas, os jornais não dão uma linha. Lamento que parte da Polícia Federal esteja agindo de maneira pouco recomendável nessa caso, como se fosse uma polícia política da pior espécie, uma Gestapo.

Folha - E se aparecerem grampos de conversas suas?
Lula
- Não há problema. Mas se aparecerem é melhor a gente abolir o telefone no país. Porque, se vale para mim hoje, vale para você, para o presidente da República. Nossa democracia frágil vai para as cucuias. As pessoas que fizerem isso têm de ser punidas.

Folha - O publicitário Duda Mendonça mudou o sr. em quê?
Lula
- A grande arma do Duda Mendonça foi descobrir o Lula como ele é. Desde 94, o Duda vem dizendo: é preciso que você seja o que é. Não é possível que vá para a televisão e apareça sempre carrancudo. Você tem de rir, tem de brincar. É isso que estou fazendo. Estou voltando a ser o Lula que sou jogando buraco, tomando um aperitivo.

Folha - Cobram do sr. o fato de não ter retomado os estudos.
Lula -
Não achei interessante. Quanto tive de fazer uma opção, fiz pela política. Preparei-me para ser político. O que é preciso é ter sensibilidade política e social e estar cercado de gente competente.



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