São Paulo, quarta, 29 de julho de 1998

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QUEM VÊ DE FORA
Buscar justiça social - A fronteira urbana


Diferentemente da América do Norte, moradores de cidades brasileiras não têm proteção de uma rede de segurança de programas de bem-estar social: não há selos alimentação, programas de ajuda previdenciária, benefícios para inválidos, impossíveis de serem empregados e os idosos


ROBERT M. LEVINE

Embora a busca de justiça social no Brasil, na década de 90, esteja centrada no campo, existem pobreza e falta de estrutura habitacional equivalentes nas cidades, também. A maior parte dos mais de 152 milhões de brasileiros vive em cidades. Em 1940, apenas 36% dos brasileiros eram moradores das cidades e mesmo essa porcentagem foi superdimensionada por um sistema de recenseamento que classificava todas as sedes de municípios como "zonas urbanas", mesmo que tivessem apenas dez habitantes. Meio século mais tarde, 2 em cada 3 brasileiros já viviam em cidades, com mais de 86 milhões de pessoas -54% da população- vivendo em cidades com mais de 100 mil habitantes. Hoje 1 em cada 3 brasileiros vive em 15 áreas metropolitanas cuja população total chega a 54 milhões de pessoas. O Estado de São Paulo tem população maior que a da Argentina. Os quase 17 milhões de habitantes da zona metropolitana de São Paulo fazem dela a terceira maior cidade do mundo. São Paulo é a maior cidade do Brasil, mas o país tem muitas outras grandes cidades -como Sorocaba, Uberlândia, Caruaru e Mogi Mirim, todas as quais têm mais habitantes do que as cidades norte-americanas de Madison, Ann Arbor, Sacramento e Orlando. Apenas uma pequena porcentagem dos habitantes das zonas urbanas brasileiras vive bem -mas os ricos vivem muito bem. Os trabalhadores residentes nas cidades vivem em espaços apertados, acossados pelo barulho e a poluição ambiental. Mas suas moradias são palácios quando comparados aos lugares onde vivem os moradores mais pobres das cidades, relegados ao mundo violento e muitas vezes temporário dos cortiços, favelas, áreas invadidas e ruas. Diferentemente da América do Norte, os moradores das cidades brasileiras não contam com a proteção de uma rede de segurança de programas de bem-estar social: não existem selos alimentação, programas "workfare" (pessoas que vivem com ajuda da Previdência e que têm condições de trabalhar são obrigadas a aceitar empregos no funcionalismo público ou seguirem cursos de treinamento profissional), pagamento de benefícios da Previdência para os inválidos, os impossíveis de serem empregados e os idosos. É verdade que os EUA têm seus sem-teto, resultado dos cortes draconianos no financiamento da Previdência e dos hospitais mentais e também da adoção de cruéis slogans darwinianos criados por políticos como o prefeito nova-iorquino, Rudolph Giuliani, na linha do "quem não trabalha não recebe ajuda da Previdência".
Mas algumas pessoas estão combatendo essas políticas. O distrito mais pobre de Nova York, o Bronx, oferece uma lição em pioneirismo social urbano. Sete anos atrás, oito famílias de imigrantes da República Dominicana, desesperadas para encontrarem um lugar para morar, toparam com algo que o jornal "The New York Times", na página A-24 de sua edição de 31 de maio de 1998, descreveu como "um prédio de apartamentos decrépito, aparentemente abandonado, no setor de Highbridge". Quase caindo aos pedaços, o prédio, de cinco andares, era habitado por mendigos e recoberto de lixo, seringas e recipientes vazios de drogas. Uma pessoa recorda que, do térreo, "olhava-se para o alto e enxergava-se o céu". O artigo em "The New York Times" dizia: "Ninguém previu os processos na Justiça, os avisos de despejo, os milhares de dólares perdidos e centenas de milhares de dólares devidos, nem os repetidos confrontos com funcionários do departamento habitacional da prefeitura que pareciam estar mais preocupados em cobrar uma dívida antiga do que em ajudar pessoas necessitadas a se ajudarem".
Por toda a cidade de Nova York, centenas de pessoas vivem ilegalmente em prédios abandonados, às vezes, "emprestando" energia elétrica dos postes de luz. Elas permanecem até serem despejadas ou até o momento em que os donos dos prédios resolvem demolir ou reformá-los. As oito famílias dominicanas decidiram combater o sistema para fazer o que fosse preciso para se tornarem as proprietárias de direito de "seu" prédio. Não eram totalmente carentes -seus integrantes tinham empregos de zeladores, balconistas de mercearias e lavanderias-, mas não tinham dinheiro para pagar habitações decentes. Primeiro pagaram algumas centenas de dólares aos mendigos e traficantes para que deixassem o local. Depois vasculharam o prédio com lanternas e faroletes, retirando o lixo. Disseram a outras pessoas que, quem se dispusesse a ajudá-las a reformar o prédio, teria direito a um apartamento. As pessoas sem família teriam direito a um quarto cada. Os dominicanos trabalharam todas as noites até tarde e nos fins de semana e feriados. Montaram portas e fecharam buracos nas paredes e no telhado. Juntando seus recursos -a renda média de cada família era de mais ou menos US$ 25 mil por ano, o equivalente a duas pessoas ganhando salário mínimo-, contrataram eletricistas e encanadores qualificados para refazer as instalações elétricas e religar os encanamentos à rede de esgotos. Chegaram até a pagar as contas de luz e água atrasadas que o proprietário, ausente, não havia pago. Pintaram o prédio nas cores pastéis da República Dominicana. Refizeram os pisos, penduraram cortinas nas janelas e, sobre as portas, colocaram crucifixos e folhas de palmeira da missa do domingo de Ramos.
Em 1994, as famílias se mudaram para o prédio, mas os proprietários legais do edifício reapareceram e começaram a brigar, exigindo o pagamento de aluguéis de US$ 850 mensais ou mais de cada inquilino, pelo prédio que estes haviam tirado do lixo. Os proprietários, Isolina e Simon Mara, não apenas haviam deixado de fazer a manutenção do imóvel, mas também de pagar a hipoteca. A prefeitura rejeitou o pedido dos proprietários e colocou o prédio à venda em leilão público. Como os moradores tinham esgotado seus recursos financeiros e não sabiam o que fazer, o prédio foi vendido por US$ 143.500 a Peter Plata, especulador de hipotecas do Bronx, que crescera no bairro de East Harlem. Quando Plata visitou o local, os moradores imploraram que ele não os despejasse. Ele concordou, em lugar disso, em vender o prédio aos moradores, a seu próprio custo. "Esta não é uma situação de lucro -é uma situação humana", disse Plata. "Não tive coragem de tirar o prédio deles. Fazer qualquer outra coisa senão ajudá-los seria como fazer mal a uma grande família." Além disso, Plata ajudou as famílias a conseguirem um empréstimo da Community Preservation Corporation (CPC -Corporação de Preservação das Comunidades), um organismo sem fins lucrativos que trabalha para conseguir moradias de baixo custo para pobres. Com a ajuda do Fundo Habitacional para Pessoas de Baixa Renda, outro órgão da prefeitura, a CPC forneceu US$ 413 mil em empréstimos para permitir que as famílias completassem a aquisição e fizessem reparos adicionais ao prédio. Em julho de 1998 as famílias se tornaram proprietárias de seu prédio. Os pagamentos mensais de hipotecas e condomínio chegarão a até US$ 500 por família, menos do que elas teriam que pagar para viverem em cortiços sem aquecimento. Lorenzo Nuñez, um dos moradores, disse: "Éramos invasores, mas nos esforçamos ao máximo para eliminar essa palavra. Agora não somos mais invasores. Somos tão iguais quanto qualquer outra pessoa".



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