São Paulo, Domingo, 30 de Janeiro de 2000


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CELSO PINTO

O Brasil e a conta argentina

Que a Argentina caminha, de uma forma ou de outra, para um acordo com o FMI, ninguém duvida. Que ninguém imagine, contudo, que ele possa vir a ser uma panacéia.
O economista Ilan Goldfajn, da PUC do Rio, fez um levantamento das empresas na Argentina que decidiram reduzir a produção no país, a favor do Brasil, ou simplesmente transferir suas atividades para cá. Chegou a mais de 30 empresas.
A mais recente foi a Alpargatas, que anunciou a disposição de demitir metade de seus 6 mil funcionários na Argentina, passando a concentrar suas atividades em São Paulo e Curitiba. A lista inclui ainda pesos pesados como a Fiat Iveco, a Cica, a Grimoldi, a Nabisco, a Philips, a Goodyear, a Pirelli e duas fábricas de autopeças, a Delphi Packard e a Dana Thompson.
Nas contas de representantes do setor de autopeças argentino, enquanto a mão-de-obra custa US$ 4 por hora lá, custa US$ 1,40 no Brasil. O problema central da Argentina, como diz Goldfajn, não é fazer o ajuste fiscal discutido com o FMI -de resto, essencial para liberar um pacote de US$ 5 bilhões em créditos. O centro do problema argentino é como dar um salto na competitividade mantendo o câmbio fixo.
O diagnóstico que está levando tantas empresas internacionais a trocar a Argentina pelo Brasil não é novo. O presidente mundial de uma grande multinacional européia, em conversa com o colunista, em novembro do ano passado, fez um diagnóstico duro em relação à operação de sua empresa na Argentina.
A seu ver, a Argentina não conseguirá manter uma indústria própria se mantiver o regime cambial e se não contar com o mercado brasileiro. Como ele achava que o câmbio não mudaria e o Mercosul estava malparado, pensava em fechar operações na Argentina a favor do Brasil.
O ex-ministro argentino Domingo Cavallo fez uma proposta ousada, como candidato à presidente, para recuperar a competitividade, cortando impostos e flexibilizando a lei trabalhista. O presidente eleito na Argentina, Fernando de La Rúa, anunciou seu próprio plano para flexibilizar os direitos trabalhistas, mas o ajuste fiscal proposto pelo FMI é a receita convencional.
Os resultados fiscais da Argentina no ano passado foram muito ruins. A meta prometida ao FMI era de US$ 5,1 bilhões. Na vida real, contudo, o déficit do governo central foi de US$ 7,094 bilhões. Além disso, os governos estaduais geraram um déficit de US$ 3,2 bilhões, elevando o déficit global para US$ 10,2 bilhões.
A Argentina, ao contrário do Brasil, não considera as contas dos Estados, nem das estatais, na conta global do déficit público. O FMI nunca reclamou, embora, como se viu em 99, os Estados possam representar quase a metade do déficit do governo central.
Dessa vez, o FMI está fincando pé na exigência de que o programa com a Argentina inclua não só o governo central (cortando o déficit para US$ 4,5 bilhões), como os Estados (cortando-o, segundo rumores, para US$ 1,2 bilhão).
O governo argentino alega o que o brasileiro sempre alegou: o país é uma federação, e o governo central não consegue controlar os gastos estaduais. Assim como no caso do Brasil, contudo, o FMI insiste em fixar metas para os Estados.
A ironia é que o Brasil, discretamente, vem tentando negociar com o FMI a retirada dos resultados das estatais do conceito de déficit global. Os argumentos são que a privatização reduziu muito a importância das estatais e os investimentos dessas empresas não deveriam, conceitualmente, ser considerados como déficit. Ao pressionar a Argentina para ampliar seu conceito de déficit, o FMI não parece deixar muito espaço para discutir a redução do conceito de déficit no Brasil.
O fato é que, por mais sentido que faça incluir os Estados no déficit argentino (e excluir as estatais no brasileiro), essa é uma questão marginal em relação à discussão da competitividade, lembra Goldfajn. Que, a seu ver, deveria ser o foco central do programa do FMI.
Se o Brasil der certo (valorizando o real), e o dólar se desvalorizar, a Argentina terá uma ajuda extra de competitividade. Só que, argumenta, há um piso para a valorização do real, pela necessidade de estímulo às exportações, e é improvável que o dólar se desvalorize num ano em que se prevê vários aumentos de juros nos Estados Unidos.
A outra linha natural de defesa da Argentina é tentar repassar parte da conta de sua política cambial para o Brasil. O presidente Fernando Henrique Cardoso já disse, para a publicação "Outlook", que é preciso "uma certa generosidade" no relacionamento com a Argentina.
Até onde ela irá, não se sabe, mas ela enfrentará resistências, no governo, de velhos adversários do Mercosul e das concessões embutidas nele. Eles vêem com horror, por exemplo, até mesmo a hipótese de aceitar conversar com os argentinos sobre compensações para a debandada de empresas a favor do Brasil.


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