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ARTIGO
Dirceu entre a inocência e a onipotência
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
"Peguei em armas pela liberdade de imprensa", disse o deputado José Dirceu num
dos raros momentos de vivacidade do seu depoimento ao Conselho de Ética da Câmara, na terça-feira passada.
A frase ilustra as dificuldades
do ex-ministro em se mostrar
convincente quando toma a palavra. Não é que seja mentira. Só é
um tanto dura de engolir. Se ele
dissesse que pegou em armas pelo
socialismo, pela justiça social, pelo fim da ditadura, não haveria
reparos a fazer. Mas pegar em armas pela liberdade de imprensa?
Claro, qualquer pessoa que, nos
anos 70 ou 80, lutasse pela redemocratização do país estava automaticamente defendendo o fim
da censura a jornais e revistas. Só
que isso não significa que a liberdade de imprensa levasse alguém
a entrar na luta armada. Muito
menos no caso de José Dirceu, a
quem não repugna manter relações com Fidel Castro.
De qualquer modo, José Dirceu
tem motivos para reclamar da
imprensa. Fiquei chocado, por
exemplo, ao topar, na coluna de
Millôr Fernandes na revista "Veja", com uma foto do ex-ministro
num riso escancarado, que revelava suas mais recônditas obturações. A imagem servia para o humorista chamar José Dirceu de
"Boca de Ouro" e citar, sem muito
propósito, falas do conhecido facínora de Nelson Rodrigues.
Diante do Conselho de Ética, José Dirceu insistia: tem sido vítima
de um linchamento moral, e não
há prova nenhuma contra ele.
"Estou cada vez mais convencido
de minha inocência", declarou,
numa formulação infeliz, com jeito de ato falho.
Em outra ocasião, ele também
já tinha tropeçado em palavras
parecidas. Afirmara-se "inocêncio", despertando alguns risos
na platéia, ao lembrar involuntariamente um prócer político com
quem não tem muitos pontos em
comum.
Na mesma linha de deslizes verbais, chamou-me a atenção uma
frase de José Dirceu na sua entrevista para Mônica Bergamo, na
Folha de domingo passado.
Ele reafirmava que o dinheiro
do valerioduto veio de empréstimos de campanha feitos pelo PT e
por Marcos Valério no Banco Rural. "O problema", acrescentou, "é
que não se quer aceitar essa tese".
Uma "tese"? Do seu ponto de vista, não deveria ser uma "tese",
uma "versão", uma "teoria", mas
sim um fato, uma verdade meridiana e simples...
Atos falhos e impropriedades
vocabulares não são, todavia,
prova de culpa. A questão é
que, embora sem provas, ninguém acredita que José Dirceu
seja inocente, e que toda a responsabilidade pelo valerioduto estivesse apenas nas mãos de Delúbio
Soares.
A imagem de "manda-chuva" é
indissociável de José Dirceu, e ainda hoje a sua argumentação fica
talvez debilitada por um excesso
de vaidade: se o acusam, se o perseguem, é porque ele, José Dirceu,
representa a esquerda, representa
o governo Lula etc. Logo após sua
demissão, ficou célebre a frase
com que José Dirceu se referia "ao
meu governo".
Resumindo, é como se José Dirceu dissesse: embora todo-poderoso, não tive poder nenhum sobre o
que acontecia. Em tese, é possível
que tenha sido assim. Mas, numa
psicologia algo perversa, talvez ele
até se sinta mal ao afirmar que algo escapara ao seu controle.
Dizer-se inocente equivale a admitir que seu poder não era tão
grande assim.
E isso dá um tom fosco, desanimado, às suas declarações. Quanto mais Roberto Jefferson se dizia
culpado, mais acreditavam nele.
O contrário ocorre com José Dirceu. Ele poderia dar argumentos
no sentido de que não era necessário pagar "mensalão", de que as
votações dos partidos aliados seguiam outra lógica, de que há
contradições e inconsistências nas
acusações dos adversários...
Mas José Dirceu se fecha, dizendo o mínimo possível, numa atitude de pura resistência.
Ainda aqui, seu passado de esquerda o condena: em tempos de
delação premiada, ele segue o
princípio de não entregar seus
companheiros.
O resultado é menos heróico do
que burocrático. "Tudo foi aprovado pelo partido"; "essa pergunta não sou eu quem tem de responder"; "eu não era deputado
quando tais casos ocorreram"...
José Dirceu diz que assume responsabilidades políticas, mas não
sabemos exatamente quais, nem
a respeito do quê.
Ganha assim um significado
paradoxal a frase mais forte de
sua entrevista à Folha: "eu fui desumanizado, eu não existo mais".
Talvez esse processo não tenha
começado agora.
A sensação de "inexistência" remete aos tempos de sua clandestinidade. Mas é a própria posição
de "apparatchik" do partido, de
executivo político capaz de agir
sem nenhuma sentimentalidade,
pronto a fazer "o que é necessário" no jogo do poder, que o desumaniza aos olhos da opinião pública, e transforma em dura indiferença pessoal o que ele chama
(ainda?) de idealismo político.
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