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SÃO PAULO
PT temeu duas vezes por eventuais abalos na liderança da petista na eleição; primeiro, com ascensão de Erundina (PSB), e, depois, com palavrão dito por Lula, em Pelotas
Como Marta venceu
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DO PAINEL
ROGÉRIO GENTILE
DO PAINEL
Na sexta-feira, momentos antes
do debate da Globo, Marta Suplicy recebeu um telefonema de
Luiz Inácio Lula da Silva. Era antevéspera da eleição e dia do aniversário de Lula, que completava
55 anos. Paulo Maluf havia exibido no seu último programa eleitoral, à noite, a imagem do petista
flagrado por uma câmera, dizendo em tom de chacota que a cidade de Pelotas (RS) era "exportadora de veado". Desde que a cena
fora ao ar, na campanha de Pelotas, no dia anterior, ele e Marta
ainda não haviam se falado.
Constrangido, Lula pediu desculpas à candidata, explicou as
circunstâncias em que cometeu o
deslize e reiterou que já havia feito
um "mea culpa" público. Temia,
àquela altura, como grande parte
dos petistas, que a frase prejudicasse a eleição de Marta. Achava
que Maluf iria usá-la no debate de
logo mais. O fantasma do caso Lurian, do qual ele, Lula, fora vítima
em 89, o atazanava.
Marta não estava preocupada
com o impacto da declaração de
Lula sobre sua eleição. Já se considerava eleita. Mas disse a Lula
que, se Maluf levantasse o tema
no debate, como suspeitava, não
pouparia o líder petista. "Pode bater, eu aguento", respondeu Lula.
Marta, também dessa vez, seguiu sua cabeça, contrariando o
partido. Emissários de Lula haviam lhe pedido, em tom de sugestão, que dissesse que a frase
havia sido tirada do contexto, que
Lula já havia se desculpado, enfim, que Marta desse um jeito de
desconversar e esvaziar o assunto.
Maluf não o mencionou, mas,
na entrevista coletiva após o debate, provocada por jornalistas,
Marta não tergiversou: disse que
Lula havia "sido infeliz".
"Há certas concessões que eu
não faço. O Lula não fez aquilo
por maldade, de jeito nenhum,
mas foi infeliz mesmo. Esse tipo
de brincadeirinha sem graça é
coisa típica do macho brasileiro",
disse Marta à Folha, no sábado à
noite, por volta das 23h.
Estava no carro, na rua da Consolação, com o senador e marido,
Eduardo Suplicy, voltando para
casa depois de seu último dia de
campanha. Cansada, mas aparentando tranqulidade, a petista havia saído, momentos antes, no
meio do filme "O Auto da Compadecida", adaptado por Guel Arraes da peça de Ariano Suassuna,
no Shopping Center Norte.
Alegou que o som da fita estava
"péssimo" (o que era verdade) e
que a cadeira do cinema era "muito incômoda" (outro fato). "Isso é
um desrespeito com a população", disse a Suplicy. "Nos Jardins, até os cinemas funcionam
melhor", completou.
Primeiros passos
Entre a saída de "Auto da Compadecida" e o início da campanha, Marta percorreu um longo
percurso. Foram, no total, cerca
de 40 mil quilômetros.
O passo inicial foi dado no dia
12 de janeiro, quando visitou o
Recanto dos Humildes, em Pirituba, região noroeste da cidade.
Chovia muito. Lá, Luiza Erundina, então no PT, construíra um
conjunto habitacional em sua
gestão (89-92). O local havia sido
escolhido a dedo.
Orientada por seus estrategistas, Marta começou sua campanha atacando as bases onde Erundina era forte e popular. A idéia
era fixar Marta, e não Erundina,
como a candidata do PT. Temia-se desde cedo, como uma premonição, o avanço da ex-prefeita.
Quando Erundina de fato disparou nas pesquisas, no rastro
das denúncias de Nicéa Camargo
(ex-Pitta) contra Maluf, o PT viveu dias de pânico. Era fim de
abril e início de maio. A ex-prefeita saltara para 22% e, a seguir, para 25%, contra 27% e, depois, 30%
de Marta. Apenas cinco minguados pontos as separavam.
Foi quando se cogitou no PT em
precipitar o confronto com Erundina, atacando as falhas de sua
gestão, numa estratégia arriscada
e fratricida, que, sabia-se, teria sequelas para todos. Foi Rui Falcão,
coordenador da campanha de
Marta, quem tratou de esvaziar
esse balão. Apostou que Erundina
cairia sozinha com o tempo.
Pior momento
Se esse foi, para o PT, o momento mais tenso da campanha,
quando percebeu que a liderança
do campo da esquerda poderia
trocar de mãos, para Marta o período mais difícil e doloroso foi,
de longe, o que se seguiu à morte
de sua irmã mais nova, Irene Cristina, no início de agosto. Morando em Paris, ela entrou em coma
após uma cirurgia no cérebro.
Morreria dias depois.
Marta estava na Vila Brasilândia, discursando numa feira,
quando Teresa, sua outra irmã,
lhe deu a notícia pelo celular: Irene Cristina entrara em coma, seu
estado era muito grave. A candidata ficou atônita. Perdeu a fala.
Lembra que, por um instante, não
conseguiu ver mais ninguém à
sua frente. Foi socorrida por auxiliares e logo retirada do local.
Viajou a Paris, viu sua irmã desacordada e voltou dias depois,
arrasada. Soube da morte da irmã
ao chegar ao Brasil. Para piorar as
coisas, como se fosse possível, o
pai de Marta, Luiz Affonso, voltara ao hospital, em estado grave,
com problemas no coração.
O PT sugeriu que Marta suspendesse a campanha por uma semana ou 15 dias. Ela não quis. Achou
que seria pior. Seguiu com seus
compromissos, mas, no carro,
longe das pessoas, não raro chorava compulsivamente. No último sábado, relembrando aqueles
dias, voltou a ficar com a voz embargada quando falou da irmã.
Certeza da vitória
Marta jamais abandonou a certeza de que seria eleita. Tanta autoconfiança deixava seus companheiros de partido de cabelos eriçados. Vários deles a orientaram a
usar o "discurso da humildade",
apesar da liderança, que nunca
perdeu. Marta até que tentava disfarçar o "já ganhei", mas não conseguia. A todo instante, acabava
traindo sua falsa modéstia.
No último dia 17, uma terça-feira, dia seguinte ao segundo debate contra Maluf pela Bandeirantes, Marta foi à noite ao restaurante japonês Tanji, o seu preferido
no bairro da Liberdade. Estava
com o publicitário Luís Favre.
Nascido na Argentina e radicado
em Paris, ex-trotskista que se
aproxmou da social-democracia
européia nos anos 80, o amigo de
muitos anos do casal Suplicy foi
quem mais ajudou Marta quando
sua irmã morreu. Atuou muito e
sempre discretamente na campanha. Petistas costumavam brincar, chamando-o de "sombra".
Favre e Marta conversavam.
Calçando chinelos, cansada, a petista reclamava do excesso de atividades de campanha. Bebendo
saquê, Marta dizia: "Eu já ganhei
esta eleição. Alguém duvida? Não
preciso agir como se estivesse dez
pontos atrás do Maluf".
Na reta final do segundo turno,
quando Maluf tirou parte da ampla vantagem da petista, o PT se
alarmou. Marta, não: "Eu entrava
nas reuniões, nos comitês, e via as
pessoas preocupadas, gritando
"vamos ganhar, companheira!", e
não entendia muito aquele clima
de desespero", disse no sábado.
"É verdade que, em 98, eu também tinha certeza de que venceria
e fiquei muito decepcionada
quando percebi que nem boca-de-urna tinham preparado".
A reta final contra Maluf, de
qualquer modo, reacendeu uma
polêmica interna no PT sobre a
despolitização da campanha, divergência que vinha desde o início
do ano. Quando assistiu às primeiras peças de TV preparadas
pelo marqueteiro Augusto Fonseca (o clipe com a "operação estrela"), mesmo Marta torceu o nariz:
"Tá, tá bom... mas tem muito a cara do Maluf". A resposta de um
assessor foi rápida: "Ótimo, significa que você vai vencer".
Marta e Augusto caminharam
juntos e cada vez mais entrosados
a partir de então. No segundo turno, no entanto, as críticas contra o
marqueteiro recrudesceram. A
direção nacional do PT, que já havia digerido muito mal o fato de
Lula ter sido excluído da campanha na TV, e a maioria da militância pressionaram para que Marta
rebatesse rápida e duramente as
críticas e insinuações de Maluf.
Fonseca dobrou a candidata.
Antes de contra-atacar, era preciso dar tempo para que a sociedade se convencesse de que Maluf
"era insuportável", mesmo que a
petista caísse um pouco nas pesquisas. Foi por isso que a carga
pesada contra Maluf foi detonada
só na última semana. O "Ufa, Maluf? Nunca mais!" funcionou.
Uma peça da campanha petista,
porém, não chegou às ruas. Atendendo um pedido pessoal de
Marta, incomodada com as ousadias baixas do adversário, Fonseca preparou um outdoor rebatendo os slogans "Mamãe, vote em
quem nunca usou droga" e "Mamãe, vote em quem é contra o
aborto". O outdoor do PT dizia:
"Filho, mentir é tão feio quanto
roubar". Marta adorou. Mas as
pesquisas qualitativas encomendadas pelo PT revelaram que a
população não achava mentir tão
grave quanto roubar. Marta concordou em engavetar a idéia.
Filhos, fãs e Chico Buarque
Quando veio à tona, o terrorismo anunciado de Maluf contra a
vida privada de Marta e a família
Suplicy virou assunto na intimidade da rua Grécia, casa da petista. Marta e Eduardo conversaram
diversas vezes com os filhos, Supla, João e André, sobre o tipo de
jogo, "sujo, muito sujo", que teriam de enfrentar dali em diante.
"Eles (os filhos) nunca ligaram
muito para política, mas todos
têm desde cedo o sentimento da
injustiça brasileira. O Maluf só
nos aproximou ainda mais. No
início, meus filhos xingavam
quando viam aquelas barbaridades. Com o passar dos dias, passamos todos a dar boas risadas."
No último sábado, à tarde, Marta e Eduardo saíram da produtora
da petista, em Indianópolis, em
direção à divisa de São Paulo com
Diadema. Minutos antes de partir, o casal era um contraste só.
Marta estava quase "zen". Agachou-se para beijar e conversar
com o filho de um funcionário, de
apenas 3 anos. Ficou ali por mais
de um minuto, enquanto todos a
esperavam. Suplicy, ao contrário
da mulher, não se continha de tão
ansioso. "Com esse sujeito (Maluf), não se brinca", repetia. Nem
a piada de um amigo, de que o senador estaria com "TPE" (tensão
pré-eleitoral), o fez sorrir. "Preciso ir logo para a rua, sentir as pessoas, conversar com elas. Só assim
eu consigo me acalmar", disse.
Já no carro, a caminho de Diadema, Marta lembrou o marido
de que havia esquecido de telefonar para agradecer a Chico Buarque pela mensagem de apoio que
ele gravou. Eram 17h15. Em 98, na
campanha ao governo do Estado,
o compositor havia se recusado a
gravar, limitando-se a colocar
suas músicas à disposição do PT.
O senador pega imediatamente
o celular e disca. Passa o aparelho
a Marta, que deixa o seguinte recado na secretária eletrônica:
"Chico, Marta Suplicy. Queria te
agradecer. Tava linda a gravação.
Meu telefone é (...). Um beijo".
Ainda no percurso a Diadema,
um jovem casal de namorados,
num Corsa preto, faz sinais insistentes para Marta. Ela abre o vidro de seu carro. Meio constrangido, Heberthon Patrício, 20 anos,
consultor comercial, diz: "Ela pula do sofá quando te vê". Ao lado,
a namorada, Vanessa Navarini,
19, secretária, não se contém:
"Marta, não vou parar de te seguir
enquanto você não me der um
beijo". Alguns metros adiante,
Marta manda o motorista estacionar na calçada. Desce do carro,
distribui bandeiras, buttons e
adesivos para Vanessa. Beija a sua
fã. Não satisfeito, o casal de namorados seguiu o casal Suplicy por
mais de três horas pela cidade.
Vanessa é um tipo de admiradora de Marta que não tem vínculos com o PT ou a política. "Meus
dois grandes ídolos são a Marta e
a Adriane Galisteu", disse à Folha.
"Elas são bem diferentes, mas têm
coragem, colocam a cara contra o
machismo, mostram a força da
mulher. Eu amo a Marta", diz Vanessa, eufórica. A petista é agora,
literalmente, uma estrela.
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