São Paulo, quarta-feira, 31 de março de 2004

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Polarização de 64 persiste nas interpretações atuais

MURILO FIUZA DE MELO
DA SUCURSAL DO RIO

Passados 40 anos do golpe de 1964, a polarização político-ideológica, alimentada pela Guerra Fria e que serviu de combustível para que militares tomassem o poder, ainda persiste no pensamento de personagens da época e de especialistas no assunto.
Militares, empresários, religiosos e pesquisadores divergem sobre os reais motivos do golpe.
O historiador Jorge Luiz Ferreira, do Departamento de História da UFF (Universidade Federal Fluminense) defende a idéia de que "a esquerda pretendia fazer as reformas de base, nem que para isso fosse preciso fechar o Congresso".
Após a experiência parlamentarista, de setembro de 1961 a janeiro de 1963, Jango assumiu seu mandato em meio a uma crise econômica, com uma inflação que chegara a 52% no ano anterior. A idéia era conciliar metas de contenção financeira com a retomada do crescimento e as propostas reformistas, reivindicadas por sua base política, composta por partidos de esquerda e pelos sindicatos.
A estratégia não deu certo, e Jango resolveu buscar o apoio popular país afora em comícios públicos -o da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964, seria o primeiro. Pretendia pressionar o Congresso, onde não tinha maioria, para aprovar as reformas sociais.
Para o cientista político Caio Navarro de Toledo, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), as esquerdas que cercavam Jango foram responsáveis pelo "agravamento do processo político" que resultou no golpe, mas não tinham a intenção de pôr fim à ordem democrática.
"A idéia de que o golpe de 64 foi preventivo é errada", afirma ele, para quem as declarações de líderes de esquerda a favor do golpe, como a do então deputado Leonel Brizola, eram "bravatas".
O sociólogo Hélio Jaguaribe concorda: "A única coisa que ocorreu com João Goulart foi que, de uma maneira infantil, ele aceitou as provocações retóricas de Brizola [então deputado federal pelo PTB da Guanabara], numa disputa em busca de maior popularidade".
Para Jaguaribe, os conservadores insatisfeitos com o governo "exacerbaram" a disputa entre Jango e Brizola, provocando o desfecho golpista. "Ou seja, golpismo só havia na direita."
No comício da Central, Jango anunciou a encampação de refinarias, a realização da reforma agrária, o controle de aluguéis e a extensão do direito de voto a sargentos e praças.
O discurso provocou uma ruidosa reação da elite empresarial e das classes médias urbanas, canalizada na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que começou em São Paulo e se estendeu por todo o país. Havia um medo comum: a chamada "comunização" do país.
"Eu assisti a última conversa de d. Jaime [Câmara, arcebispo do Rio de Janeiro em 1964] com Goulart. O cardeal estava muito preocupado com a situação porque Jango se deixou envolver pelos comunistas. O presidente disse concordar com d. Jaime, mas afirmou que não podia voltar atrás", diz o monsenhor Ivo Calliari, assessor particular de d. Jaime, um dos organizadores da reação a Jango no Rio e considerado o "cardeal da revolução".
Para o arcebispo de Santa Maria, d. Ivo Lorscheiter, na época bispo auxiliar de Porto Alegre, o apoio da Igreja ao golpe se deu por dois motivos: a "luta contra a subversão e a corrupção".
"Os militares diziam que estavam querendo guardar as instituições, mas não podemos esquecer que houve exageros depois, como o desrespeito aos direitos humanos", afirma.
Para militares, o que levou ao golpe foi a quebra da hierarquia militar, caracterizada pela anistia aos participantes da Revolta dos Marinheiros, em 25 de março de 1964, e pelo discurso do presidente em apoio aos sargentos, cinco dias depois, no Automóvel Clube do Brasil, no Rio.
"Eu só participei da revolução de 64 porque achava que a desordem estava campeando no país e basicamente a indisciplina estava generalizada nas Forças Armadas. Naquele momento, não estava pensando em combater o comunismo", afirma o general Newton Cruz, chefe da Agência Central do SNI (Serviço Nacional de Informações) no governo João Figueiredo (1979-1985)
Para o ex-ministro do Exército general Leônidas Pires Gonçalves, que foi assessor do presidente Castello Branco, os militares impediram o país de se transformar em uma segunda Cuba.
"A revolução salvou o Brasil de ser um Cubão, mas essas coisas têm preço. Ficam batendo nessa história de tortura e morte, mas não podemos esquecer que eles [os opositores ao regime] também torturaram e mataram. Era uma guerra."


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