São Paulo, sexta-feira, 31 de maio de 2002

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JANIO DE FREITAS

A verba privilegiada

As pessoas finas dizem que não se deixa pergunta sem resposta, e às vezes vale o esforço para imitá-las. Na assinatura de um convênio sobre preços para a publicidade governamental, Fernando Henrique Cardoso disse que, diante desse tipo de gasto, "precisa se perguntar se [ele ou o governo" está gastando bem ou mal".
Preliminar conveniente: trata-se de gasto pago com dinheiro recolhido dos contribuintes, por intermédio de impostos entre os mais altos do mundo, e destinado pela legislação a retornar ao contribuinte sob a forma de serviços do Estado.
A resposta é dada pelo próprio governo, de diferentes maneiras. Uma delas está no próprio convênio, ao dividir a publicidade governamental em dois gêneros: a tida como de utilidade pública (campanhas de vacinação e editais, entre outros), que receberá os descontos conveniados, e a de conveniência do governo ou do governante, posta sob o tão generoso quanto impróprio nome de institucional.
A simples diferenciação já indica que por uma parte é possível que o governo "gaste bem", dando ao dinheiro recolhido do contribuinte uma finalidade útil ao contribuinte mesmo. A outra parte, porém, convém à promoção do governo e, portanto, aos propósitos políticos do governante, seja este o presidente, um ministro e até muitos de escalão mais baixo.
Seria equivocado, porém, admitir desde logo que o gasto com publicidade dita de utilidade pública é "gastar bem". Muito pelo contrário. Grande parte desse gasto não é apenas mal, é péssimo e, com frequência, de honestidade muito duvidosa. Campanha de vacinação é sempre citada como exemplo de bom gasto, e Fernando Henrique não perdeu a oportunidade do lugar-comum. É um dos mais claros exemplos, no entanto, em sentido contrário.
Jornais, TVs, rádios, revistas, todos na mídia brasileira divulgam sempre, e sem restrições de espaço e de tempo, sem custo algum para os cofres públicos, persistente noticiário sobre a necessidade, os programas, as datas e prazos de vacinação contra paralisia infantil, gripe dos idosos, dengue ou o que mais apareça neste país sem saneamento básico. Para isso, nem precisa haver solicitação, havendo na mídia brasileira obsessão até exagerada, e em muitos casos inutilmente onerosa, com a chamada prestação de serviços.
As campanhas do governo, pagas, sobrepõem-se às campanhas do noticiário, gratuitas. Os anos de ênfase na vacinação contra a paralisia infantil deixaram demonstração definitiva, com seu gasto governamental ínfimo e só para o indispensável, da eficiência expontânea da mídia.
Pior do que o gasto em si, muitas dessas campanhas não têm, de fato, senão a finalidade de agraciar parte da mídia, como maneira pouco visível de adquirir tratamentos condescendentes ou mais. O método, ninguém duvide, é muito eficiente. E tem deixado exemplos grandiosos nos últimos anos, inclusive como ação preparatória de candidaturas.
Se a publicidade dita de utilidade pública assegura o gasto justificado, consequente e honesto, muito menos o faria a publicidade "institucional". Está respondida a pergunta. Há, porém, outra modalidade de resposta. O deputado Agnelo Queiroz proporcionou à Folha, que os publicou anteontem, dados de gastos do governo inscritos no seu sistema oficial de contabilização, o Siafi. Só para relembrar, já que a eloquência dos números nem precisa mais do que isso: o governo do presidente indagante já liberou, até meado de maio, R$ 115,5 milhões para sua publicidade (ou 78,5% do previsto no Orçamento da União), mas só R$ 70 milhões para investimentos na Saúde (2,87% do previsto), R$ 117 mil para os projetos de saneamento básico (0,0098% do previsto), 0,36% para manutenção de estradas, 3,54% para desenvolvimento do ensino médio.
A isso, como complemento bastará lembrar um dos muitos cortes de despesa: toda a verba prevista para o Fundo da Pobreza.
O que governo está fazendo com a imensidão do gasto em publicidade é muito mais do que apenas "gastar mal".



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