São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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LANTERNA NA POPA
A Ásia revistada

ROBERTO CAMPOS

O modelo dos tigres asiáticos -de autoritarismo confuciano na política, dirigismo esclarecido na economia, solidariedade grupal no social- foi objeto de generalizada admiração no restante do mundo subdesenvolvido. E mereceu o aplauso de agências internacionais, em contraste com o medíocre desempenho latino-americano. Este subcontinente perdeu a década de 80, e nesta década a recuperação é ainda cambaleante.
Após o terremoto financeiro que assolou e ainda assola o leste da Ásia, resta saber quantos edifícios desmoronaram e quantos sobrevivem do magnífico desenho original. A conclusão é que há ainda muito que admirar no desempenho asiático, mas o fato é que por muito tempo admiramos as coisas erradas. Aliás, já dizia Tom Jobim, o Brasil precisa parar de admirar o que não dá certo.
No caso dos tigres asiáticos, nossos economistas, sobretudo os da esquerda nacionalista, admiravam o dirigismo bem-sucedido. O governo teria sido o motor do desenvolvimento, através de tecnocratas esclarecidos, que alocavam créditos e benefícios fiscais para regiões dinâmicas e empresas eleitas. Os asiáticos teriam tido êxito numa coisa em que as economias ocidentais fracassaram: escolher vencedores. Alegava-se que o Brasil precisava imitar o modelo asiático de micro-gerenciamento, pela formulação de uma "política industrial". (Trata-se de um nome que me provoca calafrios pois o associo a grandes erros: o monopólio da Petrossauro, a política de informática e o programa nuclear.)
A política industrial, como instrumento de desenvolvimento, atingiu seu apogeu na década de 70, através de um maciço programa de substituição de importações, e na Ásia, na época do "milagre asiático", no fim da década de 80.
Parecia irresistível a conexão entre dirigismo governamental e desenvolvimento econômico. Duas características credenciariam o Estado como motor do desenvolvimento: a capacidade telescópica de planejar no longo prazo, a salvo de ameaças à sobrevivência; o controle dos instrumentos fiscal, creditício e cambial.
Desde então mudou substancialmente a percepção mundial das virtuosidades relativas do mercado e do Estado, prevalecendo uma visão mais realista das limitações governamentais, com ascendência paralela do setor privado como motor do desenvolvimento. É o que está por detrás da onda universal de privatizações, provocada por três fenômenos -a falência dos tesouros, a globalização competitiva e a velocidade das transformações tecnológicas, incompatível com o sonolento mecanismo decisório dos dinossauros estatais.
Questiona-se, outrossim, a capacidade telescópica do Estado. Enquanto as empresas privadas se vêem obrigadas cada vez mais a planejar para o longo prazo, por desafios à sobrevivência e pelas pressões competitivas, são os Estados que caem vítimas do "curtotermismo", seja por soluções político-eleitorais, seja pela corrosão resultante da corrupção.
Isso está provocando um reexame dos supostos sucessos do dirigismo asiático.
Há sem dúvida exemplos exitosos em que não havia vantagens "comparativas" naturais, mas se criaram "vantagens" competitivas pela alocação dirigida de recursos. Mas os tecnocratas planejadores erraram tanto quanto acertaram (inclusive o Miti japonês, que perdeu sua aura de planejador carismático). E não há evidência de as indústrias não eleitas, que brotaram das vantagens comparativas, terem crescido menos que as indústrias eleitas, especialmente protegidas. Os incentivos foram mais eficazes quando destinados a reforçar as tendências do mercado do que a contrariá-las por saltos artificiais.
Houve não só distorções graves, mas corrupção maciça no dirigismo governamental, que vieram à tona com a eclosão da crise que estourou em outubro de 1997, a partir do sistema financeiro. Na Coréia, houve favorecimento excessivo dos "chaebols", que tiveram crédito barato levando à sobreexpansão de várias indústrias, como a construção naval, a indústria automobilística, a produção de chips e a petroquímica. Na Malásia, houve uma floração de projetos paranóicos, em que considerações de prestígio político pesaram tanto ou mais que análises mercadológicas. Na Indonésia, indústrias estratégicas acabaram tornando-se prebendas familiares, com privilégios excessivos para semi-monopólios privados.
Parecem ter errado menos as regiões onde os governos intervieram menos: Hong Kong, em primeiro lugar, onde o desenvolvimento obedeceu quase exclusivamente as forças do mercado; Taiwan, onde ele se processou principalmente através de pequenas e médias indústrias. E Cingapura, onde se privilegiaram indústrias de alta tecnologia, lideradas principalmente por multinacionais.
Isso não significa que não restem políticas a admirar ou exemplos a imitar nos tigres asiáticos. Apenas precisamos admirar coisas diferentes, que nada têm a ver com o micro-gerenciamento da política industrial.
O que há a admirar são macro-políticas, das quais resultou que fosse longo o milagre asiático, de 1984 a 1997, em contraste com o curto milagre brasileiro, de 1968 a 1973. E que esse rápido desenvolvimento fosse acompanhado de dramática redução de pobreza, auxiliada esta muito mais pelo "efeito transbordamento" do crescimento rápido do que por ginásticas assistencialistas. Os elementos essenciais dessa conciliação foram a concentração de investimentos na educação básica, facilitando a absorção de tecnologia; a razoável estabilidade de preços resultante do equilíbrio fiscal; e a orientação exportadora, indutora de eficiência.
Revisitada a experiência asiática e reavaliada a experiência brasileira, resta que a política industrial que nos convém se reduz a umas poucas regras de bom senso. A primeira é que o mais importante incentivo ao progresso é assegurar-se liberdade empresarial, pela abolição de monopólios estatais e reservas de mercado. A segunda é aumentar a previsibilidade econômica, pela estabilização de preços. A terceira é que, antes da concessão de incentivos, é necessário remover obstáculos pois que, isso feito, na maioria das vezes o mercado cuidará de si mesmo.


Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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