São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

INFÂNCIA ROUBADA, UM ANO DEPOIS
Crianças do garimpo seguem trabalhando até receber bolsa

MARIO CESAR CARVALHO
enviado especial a Ariquemes (RO)

Se tudo der certo, é o começo do fim do mais degradante tipo de trabalho infantil catalogado no Brasil. Foi inaugurada ontem no garimpo do Bom Futuro (RO) uma escola para retirar 263 crianças de 7 a 14 anos do trabalho.
Em vez de chafurdarem na lama vermelha à procura de cassiterita, recebendo de R$ 100 a R$ 150, vão receber uma bolsa de R$ 50 por mês para frequentar a escola durante o dia todo.
A idéia é erradicar o trabalho infantil no garimpo com uma política de parcerias. O governo federal, por meio da Secretaria de Assistência Social, banca a bolsa.
A Prefeitura de Ariquemes, município onde fica o garimpo, a 360 km de Porto Velho, gastou R$ 58 mil com mão-de-obra para levantar a escola de seis salas para 150 alunos, com cozinha industrial e sala de professores com TV e antena parabólica.
E a Ebesa (Empresa Brasileira de Estanho S/A), que detém o direito de lavra do garimpo e se beneficiava com o trabalho das crianças, deu R$ 60 mil para a compra do material de construção.
O valor equivale a menos de um dia do faturamento da Ebesa em 97 -R$ 28,3 milhões no ano ou R$ 77,5 mil por dia. Mas é a primeira vez que uma empresa ajuda a construir uma escola para erradicar o trabalho infantil no país.

O trabalho continua
Acaba aí a boa notícia. Às vésperas da inauguração da escola e da implantação do programa de bolsas, um dos xodós da política social do governo Fernando Henrique Cardoso, as crianças do garimpo continuavam trabalhando. A primeira parcela da bolsa será paga dia 30 de junho.
Leandro de Jesus, 11, e seu sobrinho Joni de Jesus, 6, são exemplos extremos dessa prática. Em 1º de maio de 97, eles apareceram na capa do caderno especial "Infância Roubada", publicado pela Folha.
Leandro e Joni trabalhavam sob uma máquina de mais de 20 toneladas, catando restos de cassiterita para sustentar a casa. Passavam o dia debaixo d'água, usada para para separar a terra da cassiterita. A mãe de Leandro teve malária, vive doente e mal consegue trabalhar.
Um ano depois, mudaram duas coisas na vida da dupla. Leandro e Joni (pronuncia-se Djoni, como no inglês) foram expulsos da máquina e entraram para a escola. Mas continuam trabalhando em outros barrancos atrás de cassiterita, metal com o qual é feito o estanho usado em soldas.
"Se a gente não trabalhar não tem o que comer", diz Leandro. Com pequenas mudanças, é o que dizem todos os garotos que trabalham -300 entre 7 e 14 anos e 400 entre 14 e 18, segundo levantamento da Delegacia Regional do Trabalho de Rondônia. O garimpo, que já teve 25 mil pessoas no final dos anos 80, tem hoje 1.500 habitantes.
Bom Futuro espelha a força e a fraqueza do programa Bolsa Escola. Sua força é estancar o trabalho infantil assim que o dinheiro chega à família -se a criança continuar trabalhando, perde o benefício. A fraqueza do programa é que, bastou a bolsa atrasar, para as crianças voltarem para o batente.

Os sem-documento
Outra fraqueza do programa é o tratamento burocrático dado à miséria. Oito garotos entrevistados pela Folha não vão receber a bolsa porque não têm certidão de nascimento. Um cartório foi enviado ao garimpo e emitiu 300 certidões. Mas quem perdeu o cartório perdeu a bolsa.
"Tentei tirar documento, mas minha mãe não tinha nada para provar que era minha mãe", conta Maicon dos Santos, 10. Joni de Jesus também não receberá a bolsa por não ter documentos.
"A bolsa é estratégica na ação emergencial, mas o governo precisa criar uma política de longo prazo para melhorar a renda das famílias. Sem isso não se erradica trabalho infantil", diz Caio Magri, do programa Empresa Amiga da Criança da Fundação Abrinq.
Já que o governo federal não dá sinal da tal política de longo prazo, o secretário de Educação de Ariquemes, Isaías Vieira dos Santos, busca alternativas.
A Ebesa vai distribuir 250 lotes para os pais das crianças num assentamento ao lado da escola.
A idéia de Santos é criar cursos profissionalizantes para os garimpeiros. Ele sonha com cursos de plasticultura -a agricultura associada ao uso do plástico, como fazem os agricultores mais modernas. "O curso profissionalizante pode romper o círculo da miséria", acredita.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.