São Paulo, quarta-feira, 31 de julho de 2002

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ELIO GASPARI

De geisel@gritodoipiranga.edu.br para FH

Prezado professor,
É quase nenhuma a admiração que lhe dedico. Antes de minha mudança para cá, havia uma loja em Teresópolis vendendo manteiga francesa. Foi coisa sua e desse rapaz, colega de PUC da minha filha, o sobrinho-neto do general Malan.
Eu costumava dizer que antes de 1930 o Brasil era tão atrasado que importava manteiga. Pois ao atraso voltamos. Apesar disso, acho que lhe devo alguns subsídios para lidar com esse trêfego secretário do Tesouro, Paul O$Neill.
Tome cuidado com esse pessoal do Itamaraty. Imagine que num telegrama banal ao presidente americano puseram um "rogo que". O presidente do Brasil não roga coisa alguma!
Esses americanos são uns bestas, mas não são bobos. Em 1976 eu recebi o professor Kissinger. Ele era secretário de Estado e o governo americano havia sobretaxado nossos calçados. À saída, me convidou para ir aos Estados Unidos. Eu lhe disse que só iria quando não houvesse mais sobretaxa. Ele calou a boca.
Já tinham aparecido uns sujeitos pedindo que mandássemos sargentos negros para Angola. Eu lhes sugeri que mandassem os negros deles. Argumentaram que não falavam português. Prontifiquei-me a educá-los.
Eles são malandros. Estavam nos oferecendo material bélico, mas o negócio encrencou por causa dessa prosódia de direitos humanos. Oferecem uma exceção, desde que pública. Que fossem às favas. Queriam vender sucata e passar por bonzinhos. O Clinton deu-lhe a falsa impressão que os Estados Unidos são amigos do Brasil. Enquanto foi-lhes conveniente vender chiclete, foram bons parceiros. Até para assegurar a sua reeleição. Agora que o quadro é outro, mandam-vos às favas. Eles querem botar o guiso no seu sucessor. Não deixe.
Em 1976 foi eleito aquele sacripanta do Jimmy Carter e mandou a mulher dele me visitar oficialmente. Vinha com um caderno de notas e parecia tomar exame. Recebi-a com fidalguia, pois era pago para isso. Depois o marido dela veio a Brasília. Acredite que atribuiu algumas de suas declarações às perguntas dos jornalistas. Eu lhe disse que se fosse repórter (Deus me livre) faria as mesmas perguntas. Uns anos depois, já fora do poder, Carter visitou o Brasil. Mostrou desejo de me ver. Respondi que não desejava encontrá-lo. Ligou lá para casa e não o atendi. Esse é o meu jeito e não é o seu.
Jogue duro, professor. O senhor é mais que o O$Neill. É presidente do Brasil, esteve em Princeton, é doutor por Stanford e tem um convite para lecionar em Harvard. Ele tirou o mestrado a Universidade de Indiana. Eu não o receberia, mas acho que é pedir muito, Diga-lhe que o Brasil está repleto de larápios, mas o governo brasileiro nunca mandou seu adido militar pedir a libertação de delinquentes presos na polícia federal. Está aqui o Vernon Walters que confirma. Era um pedido de um senador liberalóide chamado Fulbright. O Castello Branco (tenho evitado-o, é muito irônico), mandou deixar a porta das celas abertas e os sujeitos escafederam-se.
Se o secretário falar em reformas, "dever de casa" e outras parolagens, peça-lhe para procurar um memorando escrito no dia 2 de outubro de 1953 por George Humphrey, seu antecessor no Tesouro. Ele era claro: os Estados Unidos não deviam ajudar a industrializar um país que competiria com sua produção.
Quando mandei rasgar o Acordo Militar, eles tentaram conversar por baixo do pano. Mandei todo mundo calar a boca. Conversa era comigo e comigo não havia o que conversar.
Volto ao meu ponto inicial: fomos diferentes. É isso que dá utilidade a essas lembranças. Mostram um outro caminho, o das favas.
Cordialmente,
Ernesto Geisel



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