São Paulo, sexta, 31 de julho de 1998

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JANIO DE FREITAS
Atraso moderno

A "modernização" brasileira implica atrasos que os próprios tempos atrasados ignoravam.
As concessões antigas para a exploração privada de serviços públicos -caso de telefones, bondes, ônibus, luz e força- não estabeleciam montantes obrigatórios de investimento e metas de eficiência a serem alcançadas. Já os atuais privatizadores fazem contratos com exigências minuciosas. Um cuidado muito útil para demonstrar consideração pelo usuário. Embora, é verdade, completamente inútil em termos práticos.
O caso da Light, a fornecedora de escuridão privatizada, nem merece mais ser citado, a não ser para registrar o progresso técnico que pude notar, ao vir de apenas 45 dias no exterior: os apagões estão mais frequentes, a intervalos bem menores. As exigências e metas contratuais da Light têm a mesma consistência do papel em que estão impressas.
Privatização mais recente, a da Companhia Paulista de Força e Luz, CPFL, já mostrou a nova qualidade dos serviços: os cortes de luz aumentaram 20%. Em compensação, a noite paulista ficou mais romântica na mesma proporção. Se esses êxitos não condizem com as cláusulas contratuais de proteção ao usuário, erradas estão as cláusulas, a proteção e o usuário. O que não gera consequências reais para a empresa, apesar dos termos contratuais.
O silêncio fraternal entre essas ex-estatais e as agências ditas de fiscalização, criadas pelo governo, não está sendo observado por todas as privatizadas. É o que se passa com os diversos recém-proprietários dos 22 mil km de estradas de ferro. Não lhes bastando, desde a primeira privatização, em janeiro de 96, descumprir as metas exigidas nos contratos de venda (com exceção única da pequenina ferrovia Tereza Cristina), agora oficializaram no Ministério dos Transportes um pedido de revisão do contrato. Quer dizer, das metas.
O ministro Eliseu Padilha, ao que ouviu o repórter Ubiratan Alves, "mostrou-se receptivo". Sua atividade na campanha de Fernando Henrique tem comprovado que o ministro é, de fato, muito receptivo, em ação cujos efeitos nada perdem para o homem da mala eleitoral, Bresser Pereira.
Deixa pra lá, por excesso de maus odores, a privatização da ponte Rio-Niterói. Os casos citados antes, ainda que por alto e incompletos, chegam para indicar o que valem as metas governamentais que prometeram, nos contratos da privatização, telefones a granel e a preços honestos já a partir do ano que vem. É só guardar, aguardar e conferir -para processar, talvez com um rendimento que pague a ilusão.
E como modernização puxa modernização, o governo fluminense está lançando modalidade privatizadora sem precedentes, aqui ou fora. Nas palavras do conselheiro Sérgio Quintella, do Tribunal de Contas do Estado do Rio, é "a gestão privada de recursos públicos com fins lucrativos".
A fórmula para isso é entregar a terceiros, aparentemente como a tal terceirização, "a gestão dos hospitais públicos do Estado do Rio", proporcionando ao contratado recursos de duas origens: do SUS e do "Tesouro estadual, (com) parcela fixa mensal, acrescida de prêmios, sem comprovação de atendimento individual e tabela de preços -prêmios pela superação das metas, mas sem qualquer penalização pelo seu não-cumprimento", como observa o relatório devastador de Quintella.
Enfim, um grito: é ilegal. Com o "pagamento de parcela fixa mensal, sem a quantificação dos serviços, a inexistência de qualquer risco empresarial", constata o relator, configura-se "transferência pura e simples de recursos públicos para o gestor privado". E tudo isso pretendido pelo governo fluminense com base na lei federal, de maio passado, que criou as bresserianas organizações sociais "sem fins lucrativos".
Embora seja obrigatória a apreciação prévia do Tribunal de Contas, o governo fluminense, do PSDB moralizador e modernizador, ignorou-a e já lançou as licitações para a entrega rápida de seis hospitais. Cujos novos administradores ficam autorizados, além do mais, a receber o dinheiro governamental e subcontratar, a preço mais baixo, a execução do serviço por outros.
A modernidade à brasileira é o atraso do atraso.



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