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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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JANIO DE FREITAS

Grande mentira

O Brasil, pelo visto, especializou-se em presidentes para uso externo. Um produto que faz sucesso lá fora. Em parte, pela confusão que certos correspondentes cometem entre suas empolgações tropicais e as realidades menos coloridas. Além disso, porque lá fora os presidentes se têm mostrado estadistas extraordinários.
As viagens de Luiz Inácio Lula da Silva ao Peru e à Venezuela foram grandes sucessos, e não era para menos: "Em sete meses, fiz o que outros não fizeram em 12 anos". Quantos governantes, ao longo da história, poderiam dizer o mesmo? Nem Juscelino, que proclama realizações de 50 anos em cinco.
É para continuar as realizações formidáveis que o governo montou o Orçamento da União para 2004 e o divulgou um tanto às pressas para abafar o desastre sofrido por sua "reforma" tributária na Câmara. Por hábito ou lá pelo que seja, o governo deu a esse projeto o mesmo tratamento que teve o programa eleitoral de Lula: combinou uma coisa em um tal acordo com os governadores e fez outra, introduzindo alterações determinadas ao deputado Virgílio Guimarães pelos formuladores da política do ministro Palocci.
O Orçamento, porém, não interessa aos ouvintes e leitores de fora. E, aqui dentro, logo se constatou que o de Lula destina ainda menos dinheiro que o de Fernando Henrique a investimentos sociais, reduz até o que o que o governo ainda anunciava depois de esquecido o programa eleitoral, caso, entre outros, da reforma agrária, cujo atraso está agravando, perigosamente, o seu potencial conflituoso.
Mas, para dizer o menos, importa pouco ou nada o que está no Orçamento. Nem merecem maior crédito as comparações da imprensa entre os Orçamentos de Fernando Henrique/Malan/ FMI e os de Lula/Palocci/FMI. E, nessa insignificação de uma das peças mais importantes nas democracias, está uma das maiores causas do atraso brasileiro.
O Orçamento deixado pelo governo Fernando Henrique para 2003 foi definido por Lula como "muito apertado" e acusado de não lhe permitir fazer quase nada. E o que fez o novo governo, ainda no seu início, diante de tamanha carência? Cortou mais R$ 14 bilhões, sobre os quais mentiu ao negar corte de verbas sociais, que de fato perdiam um terço daquele total. Notável também, no corte, foi a incapacidade política que o envolveu: os ministros Antonio Palocci Filho e Guido Mantega fizeram uma entrevista coletiva cheia de rapapés para comunicar o arrocho indesejado por todo o país. Levaram Lula, o governo e o PT a experimentar a primeira saraivada de críticas. Durante oito anos, Fernando Henrique e Malan puseram as verbas sob torturas muito piores, mas em silêncio anticríticas.
O Orçamento vai do governo para o Congresso, recebe os recheios de interesse dos parlamentares, é aprovado como se previsse as verbas destinadas a cada atividade governamental, e depois o governo, de cada verba, gasta o que quiser ou nem gasta. Porque não está obrigado a realizar as atividades prescritas pelo Orçamento que o Congresso aprovou. Durante meses e meses, governo e Congresso consomem tempo e dinheiro imensos para fazer o que é pior do que uma peça de ficção: é uma grande mentira.
O Orçamento, nas democracias, deve ser a peça-chave para que o Congresso -conjunto dos eleitos para representar a voz dos cidadãos- exprima os propósitos nacionais como um balizamento das atividades de governo. É um obstáculo a que o governo assuma o poder ditatorialesco de decidir, só pela vontade um presidente ou de uns poucos, as prioridades do país e o destino do dinheiro público.
No sistema brasileiro de Orçamento e governo sem compromissos mútuos, ninguém sabe para onde vai o país, nem o próprio governo sabe. Daí resulta a falta de compromisso entre o discurso e a prática dos governos, entre as aspirações da sociedade e as ações governamentais, entre os partidos e os seus programas, entre as promessas de candidatos e a sua ação de eleitos. É a desordem total e institucionalizada.


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