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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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NO PLANALTO

Crônica de uma brasileira que morreu de descaso

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Metalúrgico pobre, adaptava os desejos à própria condição. "Eu queria ser um bom profissional, ganhar o meu salário, viver a minha vida."
Comprou a primeira casa com dinheiro emprestado. "Ficava numa rua que quando chovia você não conseguia andar nem a pé. Era tudo de barro, o esgoto passava a céu aberto."
Casou-se em maio de 69. Ela, uma operária tecelã. "Era morena, cabelos compridos, muito bonita." Planejado, o filho só veio em 71. No sétimo mês da gravidez, a coisa tresandou.
A mulher contraiu hepatite. Levou-a a um hospital público. Disse: "Doutor, ela não está legal". A resposta soou-lhe atravessada: "O médico aqui sou eu." Teve de brigar para vê-la internada.
Embora aturdido, tinha esperanças. "Para mim, ela ia se tratar, ter o filho e voltar para casa." Foi visitá-la num domingo. Encontrou-a em "situação deplorável".
Ela gritava muito. "Eu fui chamar a enfermeira, a enfermeira não quis atender." Vencido o horário de visita, teve de ir embora. No dia seguinte, foi levar roupinhas para a criança. Descobriu que esperança de pobre é a primeira que mata.
"Cheguei lá e ela estava morta. Meu filho estava morto. Isso marcou muito a minha vida." Arquivou no íntimo uma convicção.
"Ninguém me tira da cabeça que ela morreu por negligência da rede hospitalar do Brasil, por problema de relaxamento médico. Poderia ter sido melhor tratada. Morreu sem que houvesse nenhuma assistência."
Com o tempo, soergueu-se. Casou-se de novo. Teve outros filhos. Progrediu além do imaginado. Trocou macacões amarfanhados por Armanis bem talhados. Virou presidente da República.
Chama-se Luiz Inácio Lula da Silva. Com insuspeitados focos de prosperidade na cintura, habita o Alvorada desde janeiro. Tem sob si, suprema ironia, todo o sistema de saúde pública. Uma engrenagem que ainda padece da mesma incúria que ceifou a vida de Lurdes, sua primeira mulher.
A experiência pessoal, relatada à biógrafa Denise Paraná e registrada no livro "Lula -o Filho do Brasil", o fez portador de um diagnóstico acurado acerca das necessidades do paciente. Mas age com inesperado descaso.
Confiou a pasta da Saúde a um obscuro companheiro petista, Humberto Costa. Promoveu o esquartejamento político da saúde pública. O ruim vai ficando pior. O razoável desanda. Insinua-se o desastre.
Confrontado com fenômenos como o derretimento de organizações do porte do Inca (Instituto Nacional do Câncer), Humberto Costa persevera no equívoco. Sob o petismo, para ocupar postos na burocracia da saúde, "é preciso ter um lado", diz ele.
Refere-se não ao lado da clientela que morre de descaso, mas ao lado "esquerdo" do espectro político. "Vamos governar com inimigos?", pergunta. Ele mesmo responde: "Vamos continuar a trabalhar com gente competente, mas que tenha lado".
O episódio do Instituto do Câncer encarregou-se de expor um naco da "competência" que o ministro logrou recrutar. Quanto à ideologia, se resolvesse problema de saúde, Vladimir Ilich Ulianov, vulgo Lenin, não teria virado múmia.
Experimente-se oferecer a um doente acomodado num leito do Inca uma terapia trotskista, stalinista, leninista, maoísta, albanesa ou, digamos, petista. Ele provavelmente gritará: "Capricha na morfina".
Quando levou a sua Lurdes a um hospital público, Lula não estava atrás de um sistema de idéias dogmaticamente organizado como um instrumento de luta política. Buscava simplesmente um médico atencioso e capaz.
Assim, recomenda-se a Humberto Costa e ao próprio Lula que procurem um oculista. O caso de ambos é de miopia. Convém evitar a rede pública.


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