São Paulo, Domingo, 31 de Outubro de 1999
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ELIO GASPARI
Aos fortes, o BNDES. Aos demais, a fila de espera


Na semana passada o andar de cima mostrou-se em duas cenas que valem por dez livros sobre a engrenagem que produz as desgraças nacionais. São retratos da forma pela qual se apropria dos recursos do andar de baixo e da naturalidade com que manda a escumalha baixar a cabeça quando a drenagem do seu dinheiro resulta em descalabros sociais.
A primeira cena se deu em Brasília. Almoçaram os presidentes da Varig, TAM, Transbrasil e Vasp. Discutiram a criação de uma só empresa, a Air Latina. Juntas, elas somam um prejuízo de R$ 266 milhões. Devem quase R$ 4 bilhões, ervanário equivalente à dotação do Ministério da Aeronáutica. A proposta, vinda da Vasp, naufragou.
O negócio do almoço era outro, o de sempre. Como disse Wagner Canhedo, o dono da Vasp: "Todas as empresas precisam de socorro. Todo presidente da República tem obrigação de defender as empresas nacionais".
Nunca é demais lembrar que o doutor Canhedo é um símbolo da nova ordem econômica brasileira. Foi o primeiro empresário a comprar uma grande estatal. A Vasp lhe foi passada no inesquecível governo Orestes Quércia.
Se FFHH tem obrigação de defender empresas, esse é um problema dele com os empresários em geral e com Canhedo em particular. A maneira como as empresas aéreas podem ser defendidas é que deve ser examinado com atenção. Se uma nação estrangeira quiser derrubar aviões da Vasp, é justo que FFHH mande a FAB defendê-los, mas não é esse o caso. Querem que a defesa venha da artilharia do BNDES, depositário do dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador.
Segundo o doutor Andrea Calabi, presidente do BNDES, "a mesma política de financiamento para a reestruturação de setores estratégicos (...) vale também para as empresas aéreas".
Se isso significa acesso a financiamentos do BNDES, o segredo do negócio é simples: querem tomar emprestado dinheiro da Viúva a 10% ao ano enquanto as outras empresas nacionais pagam pelo menos 24% no mercado. Se querem vender ações ao BNDES, cobiçam a Viúva como sócia de um mau negócio.
As empresas aéreas não querem se fundir. Querem é ir juntas ao BNDES. Caçam dinheiro barato, do bolso da patuléia.
No mesmo dia em que os doutores comiam em Brasília, Canhedo informou que as tarifas aéreas serão aumentadas de novo, desta vez em 10%. Nenhuma categoria de trabalhadores fechará 1999 com um aumento semelhante.
Se o governo resolver estimular a concorrência, liberando os vôos internacionais e permitindo uma forte participação estrangeira no mercado interno, em vez de subir, os preços das passagens poderiam cair.
Disso resulta a seguinte situação:
Há no Brasil quatro empresas, todas no prejuízo, devendo os olhos da cara. Vão aumentar as tarifas e querem se capitalizar com o dinheiro do povo. A choldra vai financiá-las em duas pontas. Numa, com o dinheiro do FAT. Na outra, com tarifas altas.
Essas desgraças não são uma fatalidade climática, como a seca do Nordeste. O transporte aéreo brasileiro poderia ter um regime de concorrência. Quem quebrasse, quebrava, como quebrou a PanAm.
Ainda não apareceu uma pessoa capaz de explicar qual é a estratégia de uma nação que ceva empresas aéreas privadas como o Brasil ceva as suas. Beneficiados por meio século de protecionismo, sempre cobraram tarifas altas. Ficaram entre as últimas companhias do mundo a oferecer planos de milhagem aos seus clientes. Tomaram dinheiro barato da Viúva e, no vencimento, rolaram-no. Como rolam alguns bilhões de impostos e taxas que devem à mesma senhora.
Enquanto os presidentes das companhias aéreas almoçavam em Brasília, o ministro Pedro Malan participava de um debate na CNBB. Discutia a pobreza. Severo, voltou a repetir: "Não há lugar para messianismo salvacionista nem para voluntarismo político na solução desse problema". Não há, e é bom que não haja, mas o problema do governo do qual Malan participa está no fato de haver salvacionismo e messianista na solução dos problemas da turma que come em Brasília. O Messias chama-se BNDES. Seu Pai é FFHH e o Espírito Santo é o dinheiro do FAT. Pior: Malan acha que o protecionismo salvacionista que beneficia as empresas aéreas é maluquice. Em vez de brigar publicamente com a turma de cima, exercita sua sabedoria em cima dos pobres.
O ministro da Fazenda desapontou a platéia quando sugeriu que os "milhares de deserdados e excluídos" que estão descontentes com o governo devem esperar as eleições de 2002. Malan tem toda razão, mas deveria estrilar para impedir que se usasse o dinheiro dos descontentes para contentar maus empresários. Até porque os descontentes, os deserdados e os excluídos lhe pagam o salário.

Um bebê abandonado (como o de Giuliana) já governou o Brasil
O filho de Giuliana (Ana Paula Arósio, em "Terra Nostra") não é o bebê mais famoso entregue a religiosos na São Paulo do século 19.
O Brasil já foi governado por um "filho de pais incógnitos", deixado na casa de um padre. Foi o regente Diogo Antonio Feijó (1784-1843), uma das maiores figuras do seu tempo. Não comia mel, comia abelha.
Governou o Brasil de 1835 a 1837 e sempre disse que não sabia quem eram seu pai e sua mãe.
Pesquisas posteriores, e um caderno de apontamentos de Feijó, garantem que ele era filho de uma senhora de velha cepa paulista, a viúva Maria Gertrudes de Camargo, de 36 anos, na porta de cuja casa o bebê teria sido depositado.
É na hora de se achar o pai que nem Benedito Rui Barbosa seria capaz de ousar tanto na trama. Segundo uma nota deixada pelo Regente, seu pai chamava-se Félix Antônio Feijó. (O texto dessa nota foi mencionado ao historiador Octavio Tarquínio de Souza, na presença de Sérgio Buarque de Holanda, mas o caderno onde ela foi escrita não lhe foi mostrado.)
Segundo o historiador Ricardo Gumbleton Daunt, o pai não seria Félix Antônio, mas o padre Fernando Lopes de Camargo, de 27 anos. Problema: Maria Gertrudes e Fernando moravam na mesma casa e eram irmãos.
Quem quiser maiores emoções, e a vida do grande Feijó, pode encontrá-las na sua biografia, escrita por Tarquínio de Souza. É o sétimo volume da magistral "História dos Fundadores do Império do Brasil", cuja última edição saiu em 1957.

A ata do cartel dos laboratórios ficou com cheiro de fraude

Há uma encrenca no ar. O texto que se entendeu (inclusive aqui) ser uma ata da reunião de 24 gerentes de venda de 19 laboratórios conspirando contra os remédios genéricos contém, até prova em contrário, trechos fraudados.
É indiscutível que os gerentes se reuniram para combinar práticas de cartelização que, nos países onde funcionam as matrizes de suas empresas, resultaria em cadeia. O Ministério da Fazenda está investigando esse aspecto e, no dia 21, seu secretário de Acompanhamento Econômico, Cláudio Considera, reuniu-se com o presidente do laboratório Janssen-Cilag, Antonio Carlos Saliba. Dessa conversa poderia ter saído a chave do enigma do cartel, mas Saliba morreu do coração no dia seguinte.
É possível que tenha havido uma fraude num trecho da ata.
Os gerentes reuniram-se no dia 27 de julho, uma terça-feira. Na segunda-feira seguinte, Nilson Ribeiro da Silva, executivo do Janssen-Cilag (hoje na diretoria da distribuidora Panarello), enviou ata a diversos participantes da reunião. Ela foi disseminada para os computadores de pelo menos 54 laboratórios. Chamava-se ATAGER.doc, "extremamente confidencial".
Afora as manhas cartelizadoras, que são a sua essência, o ATAGER.doc, dizia o seguinte:
"Cada gerente estará também motivando as suas presidências e diretorias para se unirem no desenvolvimento de um programa de qualidade a favor dos produtos éticos, visando esclarecer os consumidores e as farmácias."
Em outubro, o deputado Eduardo Jorge (PT-SP) divulgou uma ata na qual esse tópico tinha outra redação:
"Cada gerente estará também motivando as presidências para se unirem no desenvolvimento de um programa de qualidade contra genéricos para mídia, visando atingir os consumidores."
São duas propostas diferentes. Uma "contra" os medicamentos genéricos. A outra, a favor dos "produtos éticos".
Pela digitação, pelas margens e pelo texto, os dois documentos têm a mesma raiz.
As possibilidades são duas:
1) O texto entregue ao deputado era um rascunho. Teria sido alterado com a supressão de diversos parágrafos e com a mudança da redação do trecho "contra os genéricos".
2) O texto da ata transmitido no dia 2 de agosto foi adulterado. Envenenou-se o trecho "a favor dos produtos éticos" e propagou-se a contrafação.
Em qualquer das duas hipóteses, só se pode chamar de "ata" ao texto transmitido no dia 2 de agosto, pois aquele que foi dado ao deputado não circulou, como fazem as atas.
Os laboratórios sustentam que o trecho "contra os genéricos" é uma falsificação. Essa possível fraude chegou ao deputado, que a passou ao Ministério Público e, depois, à imprensa.
Eduardo Jorge recebeu a denúncia no início de setembro e não revela quem lhe deu o papel. Na segunda quinzena de agosto três pessoas já tinham cópias: o informante do deputado e dois executivos do mercado.
Enquanto não aparecer a prova de que esse documento foi escrito antes do dia 2 de agosto, será mais lógico acreditar que a ata foi fraudada depois que ela foi transmitida aos interessados.


O ministro Carlos Velloso paga pelo que não disse

O ministro Carlos Velloso, presidente do Supremo Tribunal Federal, corre o risco de ter que passar a vida com uma nuvem cinzenta sobre a cabeça.
Por conta de uma entrevista dada pelo advogado-geral da União, Geraldo Quintão, ficou entendido que, no final de setembro, quando o STF derrubou a cobrança da contribuição previdenciária dos servidores, Velloso argumentou com as cifras de suas contas domésticas.
Triste situação. O presidente do STF teria ajudado a derrubar a cobrança de uma taxa pelo efeito que ela teria no seu bolso.
Falso. Quatro meses antes da votação, Velloso concedera uma liminar contra a cobrança. Quintão procurou-o, pedindo-lhe que reconsiderasse. Ilustrando a natureza confiscatória da cobrança, o ministro mostrou-lhe diversas simulações. No topo, onde estavam os aposentados que ganham R$ 10.800, o confisco chegaria 23% da renda. Velloso sustentava que uma tunga desse tamanho afetaria o padrão de vida das vítimas, configurando o malefício do confisco.
Durante a sessão em que o STF votou o caso, o ministro retomou o argumento. Repetiu os cálculos, apresentando diversos casos, com o dos aposentados que ganham R$ 3.000, cujo confisco iria a 16%. Referindo-se ao seu salário, disse o seguinte: "Verifiquei ocorrer um decréscimo, nos meus vencimentos, que me impediria de continuar utilizando de bens úteis, como, por exemplo, o automóvel que comprara mediante financiamento".
Velloso não associou o voto aos seus vencimentos, ou ao seu carro. Isso porque tem 45 anos de serviço público, poderia ter se aposentado há mais de 10 anos, mas continua trabalhando. Não seria atingido pela cobrança. Não tinha benefício a tirar. Estava apenas fazendo uma conta.
Quintão sabia disso e voltou a sabê-lo no dia 13 de outubro, quando Velloso mandou-lhe uma carta recapitulando os fatos. Até hoje, não a respondeu.
Ao ver a nuvem que lhe ficou sobre a cabeça, Velloso pensou em renunciar ao cargo. Salvou-se tomando um Lexotan.
Na primeira conversa que teve com Quintão, Velloso procurou mostrar-lhe a inconstitucionalidade do confisco. Estava certo. Na semana passada, sugeriu que a nova emenda destinada a amparar o mesmíssimo confisco também pode vir a ser derrubada, caso se entenda que ela ofende o direito adquirido. Apenas avisou que o governo pode ter entrado numa contramão.


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