São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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Ciência em Dia

Proteínas inconstantes

Marcelo Leite
editor de Ciência

Não há área de pesquisa sobre seres vivos mais fascinante que a biologia molecular, a ciência da hora. Seu justificado sucesso costuma se dar, porém, pelas razões erradas -mais ou menos como gostar do filme "O Último Samurai" pelo desempenho de Tom Cruise, quando o astro é, de longe, Ken Watanabe.
A distorção da biologia molecular na percepção pública teve mais um véu rasgado por uma descoberta publicada em 15 de janeiro na revista científica "Nature" (www.nature.com). O trabalho de uma equipe dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA -os famigerados NIH- ajuda a solapar o mito de que os genes comandam tudo que acontece dentro de uma célula: ele revelou que proteínas também podem ter sua identidade definida fora do núcleo, onde está confinado o DNA (ácido desoxirribonucléico) que compõe os genes.
A versão corrente -simplificada e simplista- da relação entre DNA e proteínas foi consagrada em 1957 como o Dogma Central de Francis Crick (co-descobridor da estrutura em dupla hélice do DNA em 1953). A escolha do nome, com maiúsculas e tudo, foi do próprio Crick, que pensava na fórmula como uma revelação que não podia ser contraditada, o ditame principal de uma disciplina que nascia com a vocação de hegemonia das religiões monoteístas: DNA faz RNA (ácido ribonucléico) e RNA faz proteína.
Dito de outro modo, a estrutura de toda proteína é predeterminada pelo trecho de DNA correspondente, definido como gene. De outro modo ainda: a seqüência de bases nitrogenadas (letras) em um gene determina a seqüência de aminoácidos (sílabas) que define a identidade e a forma da proteína (palavra) por ele "codificada" (especificada).
O Dogma Central já não vai bem das pernas por muitas razões, e a encontrada por Ken-ichi Hanada, Jonathan Yewdell e James Yang, dos NIH, dá conta de que células humanas realizam fora do núcleo um processamento ("splicing", em inglês) de proteínas que só era conhecido em plantas e organismos unicelulares. Eles verificaram que uma proteína ativa no sistema imune (de defesa) tem 40 aminoácidos extirpados de sua seqüência por uma enzima desconhecida, e que as duas pontas restantes são reunidas -de modo não menos enigmático.
O fenômeno é chamado de "splicing" por analogia com algo de similar que ocorre com o RNA ainda dentro do núcleo celular. Partes da seqüência do RNA montado com base no molde de DNA são retiradas (os íntrons), e as que sobram (éxons) são emendadas.
O RNA mensageiro (mRNA) que sai do núcleo para participar da síntese de proteínas contém uma seqüência madura, como dizem os biólogos moleculares. Ou seja, ela coincide item por item com o colar de aminoácidos da proteína sintetizada. Após a síntese, esse colar começa a se enrolar e enroscar de maneira peculiar, de acordo com as afinidades químicas e físicas entre suas contas e grupos de contas, um processo conhecido como enovelamento ("folding"). Dele resulta a forma final da proteína, que está diretamente associada com sua função.
Os verdadeiros protagonistas da ópera celular são as proteínas, não o DNA, que pode ser comparado ao libreto e à partitura. Manter o Dogma Central implica aceitar que o libreto e a partitura encenam a ópera e que os músicos e cantores fazem somente aquilo que eles ordenam. Mas proteínas, como a mulher para Verdi, são providencialmente inconstantes.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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