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Ciência em Dia
Proteínas inconstantes
Marcelo Leite
editor de Ciência
Não há área de pesquisa sobre seres
vivos mais fascinante que a biologia
molecular, a ciência da hora. Seu justificado sucesso costuma se dar, porém, pelas razões erradas -mais ou menos como gostar do filme "O Último Samurai"
pelo desempenho de Tom Cruise, quando o astro é, de longe, Ken Watanabe.
A distorção da biologia molecular na
percepção pública teve mais um véu rasgado por uma descoberta publicada em
15 de janeiro na revista científica "Nature" (www.nature.com). O trabalho de
uma equipe dos Institutos Nacionais de
Saúde dos EUA -os famigerados
NIH- ajuda a solapar o mito de que os
genes comandam tudo que acontece
dentro de uma célula: ele revelou que
proteínas também podem ter sua identidade definida fora do núcleo, onde está
confinado o DNA (ácido desoxirribonucléico) que compõe os genes.
A versão corrente -simplificada e
simplista- da relação entre DNA e proteínas foi consagrada em 1957 como o
Dogma Central de Francis Crick (co-descobridor da estrutura em dupla hélice do
DNA em 1953). A escolha do nome, com
maiúsculas e tudo, foi do próprio Crick,
que pensava na fórmula como uma revelação que não podia ser contraditada, o
ditame principal de uma disciplina que
nascia com a vocação de hegemonia das
religiões monoteístas: DNA faz RNA
(ácido ribonucléico) e RNA faz proteína.
Dito de outro modo, a estrutura de toda proteína é predeterminada pelo trecho de DNA correspondente, definido
como gene. De outro modo ainda: a seqüência de bases nitrogenadas (letras)
em um gene determina a seqüência de
aminoácidos (sílabas) que define a identidade e a forma da proteína (palavra)
por ele "codificada" (especificada).
O Dogma Central já não vai bem das
pernas por muitas razões, e a encontrada
por Ken-ichi Hanada, Jonathan Yewdell
e James Yang, dos NIH, dá conta de que
células humanas realizam fora do núcleo
um processamento ("splicing", em inglês) de proteínas que só era conhecido
em plantas e organismos unicelulares.
Eles verificaram que uma proteína ativa
no sistema imune (de defesa) tem 40
aminoácidos extirpados de sua seqüência por uma enzima desconhecida, e que
as duas pontas restantes são reunidas
-de modo não menos enigmático.
O fenômeno é chamado de "splicing"
por analogia com algo de similar que
ocorre com o RNA ainda dentro do núcleo celular. Partes da seqüência do RNA
montado com base no molde de DNA
são retiradas (os íntrons), e as que sobram (éxons) são emendadas.
O RNA mensageiro (mRNA) que sai
do núcleo para participar da síntese de
proteínas contém uma seqüência madura, como dizem os biólogos moleculares.
Ou seja, ela coincide item por item com o
colar de aminoácidos da proteína sintetizada. Após a síntese, esse colar começa a
se enrolar e enroscar de maneira peculiar, de acordo com as afinidades químicas e físicas entre suas contas e grupos de
contas, um processo conhecido como
enovelamento ("folding"). Dele resulta a
forma final da proteína, que está diretamente associada com sua função.
Os verdadeiros protagonistas da ópera
celular são as proteínas, não o DNA, que
pode ser comparado ao libreto e à partitura. Manter o Dogma Central implica
aceitar que o libreto e a partitura encenam a ópera e que os músicos e cantores
fazem somente aquilo que eles ordenam.
Mas proteínas, como a mulher para Verdi, são providencialmente inconstantes.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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