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NEUROLOGIA
Falta de substância parecida com princípio ativo da maconha dificulta esquecimento de memória traumática
Cérebro produz "droga" que apaga o medo
REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
A chave para apagar memórias
assustadoras no cérebro pode ser
um grupo de substâncias aparentadas com o princípio ativo da
maconha, que desligam conexões
entre células nervosas especializadas em registrar emoções.
A idéia não é defender o polêmico uso terapêutico da maconha.
Para pesquisadores alemães e italianos que conduziram a investigação, o achado pode conduzir a
remédios que mantenham em
ação essas substâncias no organismo humano, que já as produz
naturalmente, ajudando a combater problemas como fobias ou
estresse pós-traumático.
O estudo, publicado hoje pela
revista científica britânica "Nature" (www.nature.com), também
dá pistas sobre como a química
do cérebro controla um mecanismo evolutivo básico: a adaptação
a situações que causam medo ou
dor e a capacidade de saber que a
situação perigosa já passou.
Não que tudo isso estivesse nos
planos do alemão Beat Lutz, pesquisador do Instituto Max Planck
de Psiquiatria, em Munique. "Na
verdade, nós começamos o estudo tentando ver como essas substâncias estavam ligadas ao aprendizado e à memória em geral",
contou Lutz à Folha.
Os compostos em questão são
os endocanabinóides, que emprestam seu nome da Cannabis
sativa, como a maconha é conhecida entre os cientistas. Produzidos em várias regiões do cérebro
de mamíferos, eles têm estrutura
molecular parecida com a do
princípio ativo da maconha.
Além disso, todos eles se encaixam no mesmo receptor neural,
uma fechadura molecular conhecida como CB1, e parecem interferir nas sinapses (ligações entre
os neurônios) responsáveis pelo
aprendizado e pela memória.
Fechadura ausente
Lutz e seus colegas queriam ver
o que acontecia com esses processos quando o CB1 não estava presente no cérebro, em especial na
amígdala -uma pequena região
na base do órgão que ajuda a processar as emoções. Para isso, a
equipe criou uma ninhada de camundongos geneticamente modificados para não ter o receptor.
Ao lado de um outro grupo de
roedores normais, eles foram
submetidos a um dos truques
mais conhecidos e úteis da ciência
comportamental: cada um recebia um choque na pata, que vinha
acompanhado de uma campainha soando - para que os bichos
aprendessem a associar o som
com a dor e ficassem paralisados
só de ouvir o toque da campainha
(veja quadro à esquerda).
Os camundongos sem o receptor CB1 demoravam muito mais a
perder o reflexo de medo do que
os bichos normais, o que foi confirmado pela análise da amígdala
dos roedores. "Ou seja, o animal
precisa dos endocanabinóides para "corrigir" sua resposta a uma situação que já não apresenta perigo", afirma Lutz.
O pesquisador alemão vai além:
uma falha no sistema, similar à
causada pela falta de um gene nos
roedores do experimento, poderia ser o mecanismo de situações
nas quais um medo recorrente e
irracional está no controle, como
fobias graves ou estresse causado
por situações traumáticas.
Lutz adverte que não adiantaria
nada fumar maconha para tentar
escapar das fobias: "O princípio
ativo dela age por todo o cérebro,
mas precisamos encontrar algo
que ataque diretamente a amígdala, onde o problema realmente
acontece", afirma.
"Além disso, nós temos evidências de que os endocanabinóides
são produzidos "sob encomenda",
de acordo com os estímulos externos", explica o pesquisador. "Por
isso, teríamos de combinar um
tratamento desse tipo com alguma psicoterapia na qual o paciente se lembre da situação traumática", especula.
Destemor e temeridade
Isso, claro, se a ligação entre
traumas variados e o CB1 for confirmada. "Isso não quer dizer que
pessoas com esse tipo de memória não tenham o sistema endocanabinóide", diz Pankaj Sah, da
Universidade Nacional Australiana, que comentou o artigo para a
"Nature". Para Lutz, um jeito de
atacar o problema seria manter as
substâncias nas sinapses, evitando sua reabsorção pelas células.
A extinção total de memórias ligadas ao perigo também não seria
desejável, deixando as pessoas perigosamente destemidas, mas
Lutz diz não temer isso. "A sinapse só poderia ser mudada no exato momento em que a memória voltasse à mente", ressalva.
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