São Paulo, quinta-feira, 01 de agosto de 2002

Próximo Texto | Índice

NEUROLOGIA

Falta de substância parecida com princípio ativo da maconha dificulta esquecimento de memória traumática

Cérebro produz "droga" que apaga o medo

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

A chave para apagar memórias assustadoras no cérebro pode ser um grupo de substâncias aparentadas com o princípio ativo da maconha, que desligam conexões entre células nervosas especializadas em registrar emoções.
A idéia não é defender o polêmico uso terapêutico da maconha. Para pesquisadores alemães e italianos que conduziram a investigação, o achado pode conduzir a remédios que mantenham em ação essas substâncias no organismo humano, que já as produz naturalmente, ajudando a combater problemas como fobias ou estresse pós-traumático.
O estudo, publicado hoje pela revista científica britânica "Nature" (www.nature.com), também dá pistas sobre como a química do cérebro controla um mecanismo evolutivo básico: a adaptação a situações que causam medo ou dor e a capacidade de saber que a situação perigosa já passou.
Não que tudo isso estivesse nos planos do alemão Beat Lutz, pesquisador do Instituto Max Planck de Psiquiatria, em Munique. "Na verdade, nós começamos o estudo tentando ver como essas substâncias estavam ligadas ao aprendizado e à memória em geral", contou Lutz à Folha.
Os compostos em questão são os endocanabinóides, que emprestam seu nome da Cannabis sativa, como a maconha é conhecida entre os cientistas. Produzidos em várias regiões do cérebro de mamíferos, eles têm estrutura molecular parecida com a do princípio ativo da maconha.
Além disso, todos eles se encaixam no mesmo receptor neural, uma fechadura molecular conhecida como CB1, e parecem interferir nas sinapses (ligações entre os neurônios) responsáveis pelo aprendizado e pela memória.

Fechadura ausente
Lutz e seus colegas queriam ver o que acontecia com esses processos quando o CB1 não estava presente no cérebro, em especial na amígdala -uma pequena região na base do órgão que ajuda a processar as emoções. Para isso, a equipe criou uma ninhada de camundongos geneticamente modificados para não ter o receptor.
Ao lado de um outro grupo de roedores normais, eles foram submetidos a um dos truques mais conhecidos e úteis da ciência comportamental: cada um recebia um choque na pata, que vinha acompanhado de uma campainha soando - para que os bichos aprendessem a associar o som com a dor e ficassem paralisados só de ouvir o toque da campainha (veja quadro à esquerda).
Os camundongos sem o receptor CB1 demoravam muito mais a perder o reflexo de medo do que os bichos normais, o que foi confirmado pela análise da amígdala dos roedores. "Ou seja, o animal precisa dos endocanabinóides para "corrigir" sua resposta a uma situação que já não apresenta perigo", afirma Lutz.
O pesquisador alemão vai além: uma falha no sistema, similar à causada pela falta de um gene nos roedores do experimento, poderia ser o mecanismo de situações nas quais um medo recorrente e irracional está no controle, como fobias graves ou estresse causado por situações traumáticas.
Lutz adverte que não adiantaria nada fumar maconha para tentar escapar das fobias: "O princípio ativo dela age por todo o cérebro, mas precisamos encontrar algo que ataque diretamente a amígdala, onde o problema realmente acontece", afirma.
"Além disso, nós temos evidências de que os endocanabinóides são produzidos "sob encomenda", de acordo com os estímulos externos", explica o pesquisador. "Por isso, teríamos de combinar um tratamento desse tipo com alguma psicoterapia na qual o paciente se lembre da situação traumática", especula.

Destemor e temeridade
Isso, claro, se a ligação entre traumas variados e o CB1 for confirmada. "Isso não quer dizer que pessoas com esse tipo de memória não tenham o sistema endocanabinóide", diz Pankaj Sah, da Universidade Nacional Australiana, que comentou o artigo para a "Nature". Para Lutz, um jeito de atacar o problema seria manter as substâncias nas sinapses, evitando sua reabsorção pelas células.
A extinção total de memórias ligadas ao perigo também não seria desejável, deixando as pessoas perigosamente destemidas, mas Lutz diz não temer isso. "A sinapse só poderia ser mudada no exato momento em que a memória voltasse à mente", ressalva.



Próximo Texto: Panorâmica - Física: Após correções, estudo ainda levanta suspeita sobre falha em teoria de partículas
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.