São Paulo, Sexta-feira, 01 de Outubro de 1999
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CIÊNCIA

Gruta fornece prova de canibalismo neandertal
Universidade da Califórnia em Bekerley
Ossos de neandertais com marcas que evidenciam canibalismo



MARCELO LEITE
especial para a Folha

Dependendo do ponto de vista, pode-se dizer que os neandertais estão agora mais perto dos seres humanos -ou mais distantes. Pelo menos alguns desses ancestrais da espécie eram canibais, comprova estudo publicado hoje na revista "Science".
Ossos desse hominídeo (primatas do gênero Homo) com marcas de desossamento e mais de 100 mil anos foram encontrados na gruta de Moula-Guercy, próxima de Marselha (sul da França). Jaziam no mesmo local em que havia restos de animais, que receberam o mesmo tratamento.
"As evidências são inquestionáveis, sobretudo porque os fragmentos ósseos humanos estavam numa área de descarte de restos alimentares faunísticos", diz o paleoantropólogo Walter Neves, do Instituto de Biociências da USP.
Ele estudou na Universidade da Califórnia em Berkeley com um dos autores do artigo, Tim White. "É o maior especialista da atualidade em marcas de canibalismo", atesta Neves.
Assim como fizeram no artigo White e o francês Alban Defleur (Universidade do Mediterrâneo, em Marselha), autor da descoberta, o pesquisador brasileiro atribui importância conclusiva ao fato de ossos tanto humanos quanto de cervos terem sido cuidadosamente quebrados.
Como só ossos grandes como fêmures foram partidos -todos eles-, os cientistas concluíram que os neandertais estavam atrás da medula óssea, um alimento rico em gordura. Assim como cérebros, e na gruta de Moula-Guercy todos os crânios animais e humanos foram arrebentados.
Há mais. Analisando as marcas de instrumentos de corte sobre a superfície dura dos fósseis ósseos, Defleur e White encontraram evidência de que ao menos uma língua e tendões foram cortados e braços, desmembrados.
Entre os esqueletos de no mínimo seis indivíduos estavam o de duas crianças, com 6 e 7 anos. Justamente estes traziam sinais de que os músculos de mastigação haviam sido filetados.
Todas as marcas encontradas foram atribuídas a instrumentos de pedra, que já eram usados pelos neandertais. Nenhum osso humano escavado tinha vestígios da raspagem por dentes de animais carnívoros, o que só foi observado nos restos de um cervo.
A mistura dos fragmentos com ossos de animais e a coincidência no tratamento dado a eles exclui que a prática fizesse parte de algum ritual. "Os fragmentos humanos não foram encontrados em contexto de sepultamento", explica Walter Neves.
Até hoje, essa possibilidade havia sido o maior argumento contra indícios de canibalismo entre neandertais. Eles já tinham sido detectados em outros sítios europeus, como na Espanha (Atapuerca) e na Croácia (Krapina).
Se é possível excluir que a carnificina fizesse parte de um sepultamento, pouco ou nada se pode dizer sobre por que aqueles neandertais do sul da França desossaram seus semelhantes. Pode ter sido uma escassez aguda de alimento num final de inverno, ou a devoração de inimigos derrotados na guerra.
"Obviamente, não temos testemunhas oculares, videoteipes ou fotografias", disse Tim White, 49, à Folha. Citando Fred Smith, da Universidade do Norte de Illinois (EUA), disse por e-mail: "Atividades se fossilizam; intenções, não".


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