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Genética revela que 8% dos homens que habitam uma vasta região da Ásia podem
descender do líder mongol Genghis Khan, criador do maior império em terras contínuas da história
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OS FILHOS DO GRANDE KHAN
Stephen Shaver/France Presse - 30.jun.2000
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Professor de 78 anos de Bayanchandmani, um vilarejo nos arredores de Ulan Bator, capital da Mongólia |
Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha
Um só homem, que viveu há cerca de mil anos
em algum rincão da atual Mongólia, realizou
um feito reprodutivo sem precedentes na história da humanidade: espalhou descendentes
masculinos por uma área que vai do Pacífico ao Cáspio,
gente que responde por 8% dos homens que vivem nas
fronteiras do antigo Império Mongol, ou 12 milhões de
pessoas, se as estimativas estiverem corretas. Flagrado
graças a seu cromossomo Y -a marca genética da masculinidade- esse pai de multidões, dizem geneticistas
britânicos, foi muito possivelmente Genghis Khan
(1162-1227), o guerreiro nômade que levou os mongóis
a governar a maior extensão contínua de terras da história humana.
Embora o resultado tenha implicações profundas para a capacidade da genética de reconstruir eventos históricos, algo tão grandiloquente nem passava pela cabeça de Chris Tyler-Smith, do Departamento de Bioquímica da Universidade de Oxford, quando ele e seus colegas se dispuseram a examinar amostras genéticas de
homens da Ásia. "Estávamos interessados em fazer um
exame básico do cromossomo Y na região. Queríamos
entender os padrões das diferentes linhagens, que pareciam muito antigas e diversificadas", diz o geneticista.
Saber quais os tipos de cromossomo Y presentes numa dada população humana é uma das maneiras mais
precisas de descobrir como a informação genética é
transmitida de pai para filho (no sentido exclusivamente masculino da expressão). O que determina se uma
pessoa é homem ou mulher é o par de cromossomos sexuais (X ou Y) recebidos dos pais: XX faz uma mulher,
enquanto a combinação XY produz um homem. Mães,
porém, só podem legar a seus filhos cromossomos X,
enquanto os espermatozóides paternos podem carregar tanto um X quanto um Y. Dessa forma, o cromossomo da masculinidade é passado em linha ininterrupta
de pai a filho homem, mudando muito pouco com o
tempo -já que ele não recombina seu material genético com os demais cromossomos.
É essa estabilidade que faz do cromossomo Y uma das
pistas prediletas dos geneticistas e antropólogos que
tentam reconstruir a história das populações humanas
com base nos genes. O DNA presente nas mitocôndrias,
as usinas de energia das células, também costuma ser
usado para esse fim: ele é transmitido apenas pelas
mães a filhos e filhas e, por estar separado do material
genético do núcleo da célula, não se recombina. Estimando a taxa de mutação espontânea de ambas as variáveis, é possível saber quem andou tendo sucesso reprodutivo nas linhagens masculina e feminina -e que
implicações isso tem em termos históricos.
A equipe de Tyler-Smith, formada por pesquisadores
ingleses, italianos, chineses, uzbeques e mongóis, colheu amostras do DNA de 2.123 homens asiáticos, pertencentes a 26 etnias diferentes, do Japão às vizinhanças
do Cáucaso. Para determinar quais os tipos de cromossomo Y que esses homens carregavam, o grupo usou 32
marcadores genéticos.
Esses trechos de DNA eram marcados por modificações características, como SNPs ("polimorfismos de
nucleotídeo único", formados pela troca de uma só base
ou "letra" química do código genético) e microssatélites
(pequenos trechos de três ou quatro bases nos quais a
mesma letra do DNA se repete). Com esses dados, foi
possível definir uma "assinatura" genética do cromossomo Y para cada homem estudado.
A família do Khan
A princípio, essa análise de rotina
nada revelou de muito empolgante: mais de 90% dos
homens tinham uma "assinatura" única, como costuma acontecer na maioria das populações humanas. Mas
8% da amostra total parecia se juntar num grupo de linhagens muito próximas, apelidadas de "aglomerado-estrela" pelos pesquisadores. "Lembro que nós dissemos, quase como uma piada, que ali deviam estar os
descendentes de Genghis Khan", conta Tyler-Smith.
A brincadeira começou a ficar séria quando os geneticistas deram uma olhada na distribuição geográfica do
cromossomo: nada menos que 16 etnias, todas dentro
da área que formava o império mongol quando seu
criador morreu. E se transformou em hipótese quando,
usando um programa de computador, a equipe calculou quando e onde o "aglomerado-estrela" teria se originado. O veredicto do software: uma origem por volta
de mil anos atrás, na Mongólia.
"Se você nos perguntar se essas pessoas partilham um
ancestral comum, eu diria que isso é uma certeza matemática", afirma Tyler-Smith. "E algo que nos ocorreu
bem cedo, como mostra a piada, é a provável ligação deles com Genghis Khan." Além da coincidência temporal
e espacial com a família do Khan, outra pista apontava
para o governante: no Paquistão, apenas uma etnia, os
hazaras, tinha membros entre o "aglomerado-estrela".
Coincidência ou não, a tribo se considera descendente
do imperador mongol.
"As conversas que tivemos com historiadores forneceram outros indícios", conta Tyler-Smith. "Numa
campanha militar, por exemplo, o produto dos saques
era dividido igualmente entre soldados e comandantes,
mas todas as mulheres jovens tinham de ser enviadas
para Genghis Khan." Isso sem falar nas diversas esposas
"oficiais" que o líder teve ao longo da vida.
Mesmo assim, o pesquisador de Oxford alerta: "Se você nos perguntar se temos certeza de que ele foi o originador desse cromossomo, a resposta é não, mesmo
porque a estimativa mostra que ele surgiu várias gerações antes do nascimento dele", diz. "Mas ele certamente levava esse cromossomo. Não podemos excluir a possibilidade de que, no mesmo lugar e na mesma época,
alguma outra pessoa tivesse sido responsável por essa
expansão. Contudo, seria muito improvável que tamanho sucesso reprodutivo não tivesse motivos históricos", afirma Tyler-Smith.
"Além do mais, é preciso deixar claro que tudo isso
não aconteceu numa geração só. Todos os irmãos de
Genghis Khan teriam o mesmo cromossomo, assim como seus filhos e netos". Essa família incluiria Kublai
Khan, neto do conquistador e imperador da China
(com as milhares de concubinas que eram parte das benesses do cargo), e linhagens reais na Rússia, na Pérsia,
na Coréia e na Mesopotâmia. O último descendente de
Genghis Khan a governar um reino, Shahin Girai, khan
da Criméia, morreu em 1783.
Seleção natural
Se a hipótese da equipe de Oxford
estiver correta, eles podem ter dado de cara com um tipo de seleção natural muito raro na espécie humana,
causado não pelas vantagens inerentes de possuir esse
ou aquele gene, mas por pertencer a um clã que concentrou o poder (e as mulheres) de um continente inteiro
com uma intensidade sem precedentes.
"Em populações regionais, como os índios achés, do
Paraguai, existem coisas parecidas. Todos eles têm o
mesmo cromossomo Y", diz Maria Cátira Bortolini,
pesquisadora da UFRGS (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul) que estuda as linhagens do cromossomo em ameríndios. "Mas eles são apenas alguns milhares de indivíduos. Numa escala mundial como essa, eu
nunca tinha visto", ressalta Bortolini. "Qualquer um
que estudar essas populações asiáticas vai ver as pegadas de Genghis Khan ali."
Tyler-Smith concorda: "Esse tipo de assimetria nas linhagens de cromossomo Y acontece, no máximo, entre
populações inteiras. No Brasil, por exemplo, onde houve muita mistura genética, esses cromossomos são
principalmente de origem européia, enquanto o DNA
mitocondrial é de origem indígena ou africana. Mas
Genghis Khan realmente se destaca como algo único".
"Isso demonstra a alta correlação entre os estudos
com o cromossomo Y e a história", afirma Fabrício Santos, geneticista da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). "Como a história humana, principalmente
quando se fala de conquistas e dominação, foi bastante
machista, esse cromossomo é mais adequado que o
DNA mitocondrial para responder a essas perguntas."
Por enquanto, de acordo com Tyler-Smith, é difícil saber se o "imperador dos imperadores" (tradução de
"Genghis Khan", cujo nome era Temujin antes de assumir o título) deixou descendentes também entre os russos, que viveram por séculos sob domínio mongol. "Seria interessantes descobrir isso", diz o britânico.
"Eu diria que Genghis Khan é o exemplo mais extremo de algo que aconteceu outras vezes. Os homens têm
uma tendência através da história a agir dessa forma
quando as circunstâncias o permitem", diz Tyler-Smith. "Só sei que, toda vez que paro para pensar, fico
assombrado. Um em cada 200 homens no planeta descende dessa linhagem", afirma.
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