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Micro/Macro
O Universo de Babel
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Multiverso é uma palavra nova, inventada por cosmólogos para diferenciar o Universo em que vivemos de
um outro que não só o contém, como
também a todos os universos possíveis.
Em "A Biblioteca de Babel", o escritor
argentino Jorge Luis Borges conta de
uma biblioteca que contém todos os livros que foram escritos e os que ainda
vão ser. Nela, em salas hexagonais como
em uma colméia, cada qual com o mesmo número de prateleiras replicadas indefinidamente, encontram-se livros que
incluem todas as possíveis combinações
de letras e símbolos do alfabeto, a maioria delas não fazendo qualquer sentido.
Encontram-se também comentários sobre todos os livros já escritos e os comentários sobre esses comentários, enfim,
tudo o que é possível existir na página
impressa está nessa biblioteca.
Borges provavelmente pensava na biblioteca como uma metáfora da dimensão infinita do Universo e de nossos esforços, na maioria fúteis, de tentar compreendê-lo em sua totalidade, feito os bibliotecários, que passavam a vida tentando decifrar o enigma da biblioteca, o seu
significado fundamental.
O mistério da origem do Universo, o
Big Bang, como é conhecido, é o nosso
grande enigma de Babel. Todas as observações que temos até o momento, que
parecem bem conclusivas, indicam que
o Universo teve mesmo uma infância
muito quente e densa, e que ele vem se
expandindo e se resfriando desde então.
Esse "então", o evento que deflagrou a
existência do cosmo, ocorreu há aproximadamente 14 bilhões de anos. Mas que
evento foi esse? Nos anos 40, alguns cientistas, revoltados com as possíveis implicações religiosas de um Universo com
um evento inicial (muito semelhante ao
"Gênese"), propuseram um modelo alternativo, que ficou conhecido como
modelo do estado padrão.
Segundo ele, o Universo não teve um
começo e nem terá um fim, permanecendo sempre essencialmente o mesmo.
A diluição de matéria causada pela expansão cósmica (que eles já conheciam)
era compensada por um processo de
criação de matéria, de modo a deixar as
coisas aproximadamente iguais, feito
uma banheira destampada, mas com
água jorrando da torneira. Segundo esse
modelo, a questão da origem do Universo simplesmente não fazia sentido.
Nos anos 60, o modelo do estado padrão foi abandonado, em nome do modelo do Big Bang, o aceito hoje. Pelo jeito,
o Universo teve mesmo uma origem.
Mas será que não existe outro modo de
driblá-la, talvez fazendo-a menos fundamental do que A Origem?
Isso seria possível, ao menos em princípio, caso o Universo tivesse matéria suficiente para frear a sua expansão. A atração gravitacional iria então forçar a contração do cosmo sobre si mesmo, até a
sua implosão final. Ela seria seguida de
nova expansão, que, por sua vez, seria seguida por outra contração, e assim por
diante, como uma fênix eternamente renascendo de suas próprias cinzas. Essa
opção, mesmo que muito bela, parece
não corresponder ao que é observado. O
que nos resta?
Resta-nos a possibilidade de nosso
Universo não ser o único que existe, mas
parte de um multiverso, uma entidade
infinita, de onde brotam e desaparecem
universos de todos os tipos, como bolhas
em uma sopa. O multiverso é eterno e infinito, mas os universos que dele brotam
podem não ser. Desse borbulhar cósmico surgem alguns universos que podem
sobreviver mais do que outros, feito o
nosso, crescendo o suficiente para criar
estruturas organizadas capazes de gerar
complexidade, de estrelas e planetas a
bactérias e mamíferos. Claro, tal como
com os poucos livros que fazem sentido
na Biblioteca de Babel, esses universos
com estruturas complexas são de longe
os mais raros. Na sua maioria, os universos desaparecem tão rapidamente quanto surgem, experimentos falhos no constante borbulhar do multiverso.
Isso parece metafísica, mas não é, ao
menos completamente. Existem teorias
cosmológicas, formuladas matematicamente, que prevêem a existência desse
multiverso. Claro, a idéia é altamente especulativa. Mas ela é interessante o suficiente para ser estudada com seriedade.
Afinal, caso vivamos em uma bolha neste vasto multiverso, nossa origem, mesmo que importante para nós, é mais uma
ocorrência insignificante na sua existência atemporal.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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