São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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Micro/Macro

A realidade do invisível

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Cientista tem de ser cético; caso contrário, a ciência perderia a sua credibilidade. Imagine se qualquer um pudesse propor uma "teoria" da gravidade, dando a sua explicação ao fenômeno da atração gravitacional. Seria extremamente perigoso usar qualquer dessas teorias para, por exemplo, lançar um satélite em órbita da Terra.
O ceticismo acirrado do cientista, que irrita muita gente, é absolutamente fundamental. Nós somos treinados para duvidar, para questionar. Apenas após passar por vários testes e confirmações, incluindo a explicação quantitativa de fenômenos observados, é que uma teoria será provisoriamente aceita.
Digo "provisoriamente" porque teorias nunca estão imunes a testes futuros. Muitas vezes, uma teoria que parece fornecer uma explicação completa de certos fenômenos acaba sendo revisada no futuro. Um exemplo é a própria gravidade. Até 1916, a teoria que Isaac Newton propôs em 1687 reinava suprema. Mas Einstein mostrou que ela é, na verdade, uma aproximação de uma teoria mais completa, a teoria da relatividade geral.
Essa é a cultura da ciência. Quando um cientista vai apresentar os resultados de sua pesquisa em um seminário, ele ou ela vai preparado para receber críticas e questões. Se a idéia estiver correta, ela sobrevive. Ou, pelo menos, deveria, caso o sistema fosse perfeito. Mas não é.
Muitas vezes, idéias corretas são massacradas, mesmo que expliquem fenômenos observados. Isso porque cientistas também são gente e, como qualquer um, também têm preconceitos com relação a essa ou aquela visão de mundo.
Uma ilustração disso é a história do átomo. Os gregos Leucipo e Demócrito propuseram, em torno de 400 a.C., que tudo é feito de tijolos invisíveis e indivisíveis de matéria, os átomos. Newton foi um grande defensor da teoria atômica, tentando explicar a luz usando partículas. Mas ninguém levou a idéia muito a sério até o século 20. Por que isso?
Eis um texto de 1883 do filósofo e físico alemão Ernst Mach, famoso pelos seus estudos de fenômenos supersônicos (daí a velocidade de aviões supersônicos ser dada em Mach 1, Mach 2 etc.): "Os átomos não podem ser percebidos pelos sentidos; como todas as substâncias, eles são produto do pensamento. Mesmo que a teoria atomística seja tão eficiente na reprodução de certos fatos, o físico que abraça as leis de Newton só poderá aceitar essas teorias como provisórias, tentando obter, de modo mais natural, um substituto satisfatório".
Ou seja, segundo Mach, como átomos são invisíveis, não podem ser levados a sério. São "produto do pensamento", e a ciência tem de ser construída com objetos que possam ser detectados pelos sentidos. Na época, não havia mesmo jeito de "ver" átomos. Microscópios haviam revelado o mundo invisível dos micróbios, mas se sabia que, se existissem, átomos estariam muito além da capacidade de microscópios comuns.
Na época em que Mach escreveu seu comentário, teorias estavam sendo propostas para explicar o comportamento dos gases (como o ar) usando átomos. Por exemplo, sabia-se que, quando se aquece um gás, sua pressão aumenta proporcionalmente à temperatura. Pressão e temperatura são grandezas macroscópicas, que podem ser medidas por instrumentos.
Foi a explicação da origem da temperatura e pressão de um gás que causou polêmica: em 1845, James Waterson propôs que, se um gás fosse composto por moléculas submicroscópicas, sua temperatura seria proporcional ao quadrado da velocidade média das moléculas: calor é movimento. Quanto mais quente o gás, mais rápido suas moléculas se movem. Já a pressão é proporcional ao quadrado da velocidade média multiplicado pelo número de moléculas: mais moléculas, pressão maior. Por isso sopramos o ar em um balão para fazê-lo crescer.
Waterson foi duramente criticado por usar objetos invisíveis. Seu artigo foi rejeitado. "Não faz o menor sentido e não deve ser lido perante a Royal Society", escreveu um crítico.
Passaram-se mais de 50 anos até que o átomo fosse aceito. E isso só ocorreu após a descoberta do elétron, em 1897, e a do núcleo atômico, em 1911. Após o invisível ter ficado visível. Às vezes, "produtos do pensamento" são reais. Mas, como nem sempre isso é verdade, é melhor mesmo ser cético.
Cético, mas não cego.


Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"


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