São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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Ciência em Dia

Genomas brutos e líquidos

Marcelo Leite
editor de Ciência

O nome do veleiro de 30 m (cem pés) diz um tanto sobre a personalidade do dono: Sorcerer, ou Feiticeiro(a). Os inimigos de Craig Venter até já aproveitaram para apelidá-lo de Aprendiz de Feiticeiro, deixando bem clara sua antipatia com o projeto do polêmico cientista-inventor-empresário de singrar os mares do mundo coletando micróbios para seqüenciar (soletrar) seus genomas.
Venter deixou há dois anos a presidência da empresa Celera, um dos dois grupos que transcreveram os mais de 3 bilhões de letras de DNA contidas no genoma humano. Continua a toda, porém. Uniu o útil -sua capacidade frenética de ler genomas- com o agradável -seu hobby, velejar- e conseguiu financiamento de dois potentados, um público -DOE, o poderoso Departamento de Energia dos EUA- e um privado -a Fundação Gordon e Betty Moore, do fundador da Intel-, para sua máquina de açambarcar genes marinhos.
Venter já provou do que é capaz. Primeiro, com o genoma humano. Ninguém acreditou muito que ele seria capaz de seqüenciar e ordenar o genoma humano em três anos, mas ele cumpriu a promessa. Como subproduto, forçou seu concorrente financiado por verbas públicas, o Projeto Genoma Humano, a antecipar em dois anos seu trabalho -ambos foram publicados simultaneamente em fevereiro de 2001.
Agora, Venter demonstra que seu método de triturar genomas, conhecido como "whole-genome shotgun", também funciona no atacado. Em 4 de março, ele e uma penca de colaboradores publicaram na revista "Science" (www.sciencemag.org) um dos primeiros "genomas ambientais", o de algumas gotas do mar dos Sargaços, nas Antilhas.
Funciona assim: amostras de água do mar são coletadas, e os genomas de todos os microrganismos ali flagrados são seqüenciados ao mesmo tempo. No caso Sargaços, Venter pescou na água salgada um total de mais de 1 bilhão de caracteres de DNA (um terço do genoma humano). Usando apenas métodos computacionais, distribuiu esse sopão de letrinhas entre pelo menos 1.800 espécies de micróbios. Entre elas, provavelmente, 148 de bactérias desconhecidas.
É algo parecido com recolher num puçá 1 bilhão de caracteres de um alfabeto de apenas quatro letras e conseguir montar 1.800 livros da biblioteca que virou moda chamar de "genoma ambiental". Só que o mais importante, no caso, não são os livros, mas as palavras (genes) contidas neles. Venter achou 1,2 milhão delas, inéditas, ou seja, que nunca haviam emergido de outros projetos genoma (o humano, por exemplo, rendeu 40 mil genes, vários conhecidos).
O DOE entra na história porque está interessado em micróbios e genes que possam conter dicas úteis para resolver problemas cabeludos do futuro industrial, como a produção de energia limpa e o saneamento ambiental (reciclagem de poluentes). No vocabulário filtrado do mar dos Sargaços, por exemplo, Venter amealhou 782 genes que parecem ter relação com fotorreceptores -moléculas sensíveis à luz, como aquelas envolvidas na fotossíntese, a mais antiga forma de aproveitamento da energia solar.
Essa é a meta do programa GTL (Genomes to Life, ou Genomas à Vida), que mais parece uma plano de manutenção da hegemonia genômico-bioinformática no campo das ciências da vida. Agora, com a Intel como "insider".

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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