São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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CIÊNCIA
Estudos relacionam a protelação de tarefas à ansiedade e à depressão
'Amanhã eu faço'

LUIZ EUGÊNIO DE A. M. MELLO
especial para a Folha

Ano Novo, vida nova, novos planos para o futuro: cuidar melhor da saúde, aprender ou melhorar os conhecimentos de uma língua estrangeira, arrumar aquela peça quebrada do carro ou da casa e por aí vai. Mas, como bem sabemos, para a maioria das pessoas poucos desses planos terão realmente se concretizado ao final deste ano.
Dentro de todos nós (com variações, é claro) existe uma forte tendência ao adiamento, à "enrolação", ao "amanhã eu começo". Talvez não devesse haver qualquer surpresa nisso.
Mas não é só no país de Macunaíma ou dos nossos irmãos latino-americanos que viceja o "mañana". Antes de ser um problema cultural regional, esse é um problema do ser humano.
A procrastinação, que é como se chama esse adiamento das tarefas ou das realizações, é, já há algum tempo, objeto de estudo da psicologia. Também, diversos desses livros de auto-ajuda ou guias de eficiência no trabalho ensinam como enfrentar e vencer a procrastinação. As estimativas disponíveis sugerem que entre 15% e 25% das pessoas adultas são, foram ou serão procrastinadoras em algum momento de suas vidas.
Nos Estados Unidos, berço da cultura antiprocrastinação, um estudo recente sugeriu que "a procrastinação se situa no núcleo de comportamentos, como o abuso de drogas, marcados por impulsividade e baixa capacidade de autocontrole".
Nesse estudo, publicado na revista "Psychological Science" (novembro de 1997), Dianne Tice e Roy Baumeister compararam dados de estudantes universitários referentes ao estresse e aos sintomas gerais de saúde em relação às tarefas escolares daquele período. Os estudantes que se diziam procrastinadores tiveram notas piores e também relataram um maior estresse e uma frequência de gripes e resfriados. Na verdade, os procrastinadores se deram melhor no começo do ano, mas acabaram levando a pior no cômputo geral. Uma versão da fábula da cigarra e da formiga sob uma outra óptica. Assim, se, ao iniciar um trabalho, você precisa antes apontar todos os lápis, arrumar todos os papéis, tomar um último gole de água e resolver quaisquer outras coisas, cuidado.
Além dos problemas de saúde, entre os fenômenos gerados pela procrastinação estão o sentimento de culpa pelas tarefas não-terminadas e a formulação de pensamentos mágicos (o desejo da tarefa ou do problema miraculosamente desaparecer). Como principais soluções: o gerenciamento adequado do tempo e a confecção de listas de coisas a fazer ou objetivos a atingir. Em graus extremos, a procrastinação se associa a estados depressivos, baixa auto-estima e merece acompanhamento especializado, com grande ênfase na psicoterapia.
Os muitos estudos sobre procrastinação entre os estudantes deixam entrever vários aspectos interessantes sobre o assunto. A procrastinação parece estar em parte associada à necessidade básica humana de criação de rituais. Nos estudantes bem adaptados ao sistema escolar, esses rituais têm pelos menos cinco etapas definidas: procrastinação premeditada, ansiedade preparatória, sensação de impotência, adiamento da data limite e, finalmente, a execução da tarefa e uma sensação íntima (muitas vezes não comemorada) de vitória. Para algumas pessoas, esse ritual parece envolver o adiamento de alguma tarefa até o último instante possível, quando então, em clima semelhante ao de filmes de ação e aventura, o trabalho é finalmente terminado ou entregue. De acordo com os especialistas no assunto, é possível que, para essas pessoas, o calor da excitação provocada pela situação-limite seja a causa da procrastinação.
Um novo alento com relação à procrastinação vem de estudos feito em pombas e publicados por James Mazur em 1996 e 1998. Não somos só nós humanos que sofremos desse mal: as pombas também são adeptas da procrastinação. Tendo que executar uma tarefa, as pombas, nesses estudos, optaram por tarefas maiores e com início mais tardio. Ou seja, preferiram procrastinar como conclui o autor do trabalho.
Assim como outros seres vivos (ou pelo menos como as pombas), temos um motor que nos empurra para explorar o mundo ao nosso redor e, paradoxalmente, temos também um freio que nos retarda nesse intento. O nosso sistema nervoso e o de diversos outros animais se estruturou de forma a permitir que circuitos neurais específicos desempenhem comportamentos específicos como exploração ou procrastinação. Como consolo, podemos ao menos alegar a origem ancestral, profundamente enraizada, para justificar nossa procrastinação e começar o ano só depois do Carnaval.


Luiz Eugênio A. M. Mello é professor de neurofisiologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).



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