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MICRO/MACRO
Ciência e espiritualidade no final do milênio
MARCELO GLEISER
especial para a Folha
Nesta era pré-terceiro milênio,
em que tudo acontece e se transforma tão rápido, o apetite das
pessoas por verdades duradouras vem se tornando insaciável.
A disseminação de computadores e o fácil acesso aos meios de
comunicação construiu de fato
uma "aldeia global", onde a
troca de informação entre culturas diferentes é mais fácil do que
nunca.
Essa "overdose" de informação, ao mesmo tempo estimulante e assustadora, pode causar
muita confusão. A tecnologia
passa a ser percebida como um
monstro de duas cabeças, ao
mesmo tempo capaz de curas
miraculosas e de armas de extermínio global. Daí surgem teorias
sobre conspirações secretas (como no seriado de TV "Arquivo
X"), suspeitas contra o governo
(às vezes bem fundamentadas) e
um sentimento de intolerância
que ameaça polarizar a sociedade em níveis insustentáveis.
O resultado é uma sensação de
pânico e fragilidade que, infelizmente, é explorada por oportunistas que se apresentam para as
pessoas como a única alternativa
em um "mundo louco". Inevitavelmente, isso vem acompanhado de um maior interesse
por religiões e superstições da
"nova era", na popularidade de
falsos profetas e numa adversidade para a ciência e para o que
ela tem a dizer sobre o mundo.
Sendo um cientista profundamente preocupado com questões espirituais, é muito importante para mim expor o que
acredito ser o lado humano da
ciência, na tentativa de oferecer
aos leitores uma interpretação
talvez bastante alternativa de seu
papel na sociedade moderna.
A ciência nos aproxima da natureza e nos transporta a uma
percepção do mundo que pode,
com certa liberdade, ser chamada de profundamente espiritual.
Einstein justificava sua devoção
à ciência com o que ele definiu
como o "sentimento religioso
cósmico", associando ao estudo
racional da natureza uma dimensão espiritual. Por que não?
A passagem para o próximo
milênio serve de veículo para explorarmos essa complementaridade entre espiritualidade e
ciência na vida moderna. De um
lado, há as profecias sobre o fim
do mundo. Do "Livro das Revelações" até Nostradamus, parece que não temos escapatória.
Não é à toa que as pessoas estão meio assustadas com a passagem do tempo, esquecendo,
talvez, que essa contagem de
tempo é arbitrária; fomos nós
que inventamos a idéia de dividir
o tempo em intervalos para organizar melhor nossas vidas e
controlar nossos medos. O Universo está pouco ligando para
como nós contamos o tempo.
Por outro lado, a mídia tem explorado outros tipos de apocalipse, não os vindos do "céu",
mas dos céus. Sem dúvida, o perigo de uma colisão com um asteróide é real; muito provavelmente os dinossauros foram exterminados por uma colisão que
ocorreu há 65 milhões de anos. E
muitos devem se lembrar das
dramáticas imagens fornecidas
pelo telescópio espacial Hubble
da colisão do cometa Shoemaker-Levy com Júpiter, em 1994.
Mas, se a ciência parece confirmar como uma possibilidade
(bastante remota) o que já estava
dito nas "Revelações", que
"uma estrela cairá dos céus trazendo fogo e destruição", ela
também nos oferece a chance de
proteção contra tal calamidade.
Devemos nos "aproximar" do
cosmos, identificando asteróides
com potencial de colisão com a
Terra. Uma vez identificado um
possível candidato, devemos
destruí-lo ou desviá-lo da rota.
A história do Sistema Solar está
cheia de colisões entre os vários
planetas, cometas e asteróides.
Essas colisões fazem parte de um
processo cósmico de evolução,
com inúmeras criações e destruições. Nós, habitantes de um
planeta relativamente próximo
do Sol, nos desenvolvemos a
ponto de poder alterar, por meio
de nosso conhecimento científico, parte dessa história. Com isso, nos tornamos parte ativa da
história cósmica. Essa integração
com o cosmos é, para mim, um
belíssimo exemplo do valor espiritual da ciência.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica
do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e
autor do livro "A Dança do Universo".
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