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Livro do norte-americano Tom Dillehay revê debate sobre o povoamento da América
Uma nova Pré-História
Marcelo Leite/Folha Imagem
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Pintura rupestre em abrigo do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Estado do Piauí, que tem alguns dos sítios arqueológicos mais antigos e polêmicos das Américas, como o do Boqueirão da Pedra Furada |
Claudio Angelo
da Reportagem Local
O ano de 1976 corria manso para Tom Dillehay.
Ensinando arqueologia na Universidad Austral, na modorrenta Valdivia, sul do Chile, o
pesquisador norte-americano jamais esperaria deitar as mãos em qualquer coisa que parecesse, de
longe, uma grande descoberta. Mas, em meados daquele ano, foram encontrados estranhos ossos e objetos de
pedra enquanto se abria uma estrada para carros de boi
na localidade de Monte Verde, não muito longe dali. Dillehay e sua equipe foram chamados para examinar o
local. E a pré-história do continente americano nunca
mais foi a mesma.
As datações no material de Monte Verde revelavam
que um grupo de seres humanos acampou, caçou e comeu mastodontes ali cerca de 12.500 anos atrás. "Essas
datas eram simplesmente impossíveis", diz o cientista.
"Quando eu era estudante de pós-graduação, tinha sido
treinado a acreditar (e a nunca questionar seriamente)
que a primeira cultura do Novo Mundo era a de Clovis,
da América do Norte, de 11.200 anos de idade. Como as
pessoas poderiam ter chegado ao sul do Chile 1.300
anos mais cedo?", questiona Dillehay.
Essa é a primeira grande pergunta que o pesquisador
americano faz no livro "The Settlement of the Americas
- A New Prehistory", publicado nos EUA no ano passado e ainda sem previsão de lançamento no Brasil. Perseguindo a sua resposta durante 20 anos, Dillehay acabou
por tirar do caminho uma das pedras arqueológicas
mais duras deste século -o chamado paradigma "Clovis-first" (primazia de Clovis), que pregava a entrada
recente do homem nas Américas. Acabou, também,
limpando a área na academia para todo tipo de hipótese
que explique a chegada dos primeiros americanos. Hoje
já é possível afirmar impunemente que o homem estava
aqui há 45 mil anos. Ou que os primeiros americanos
eram negróides. Ou que vieram da Europa. Ninguém
mais é excomungado por isso.
Pensamento único
Durante mais de 60 anos, a explicação para o povoamento das Américas era uma espécie de dogma baixado pelos "donos" da arqueologia
no continente, os cientistas dos EUA. O modelo era
simples como um cheeseburguer: os avós dos índios
vieram da Ásia há não mais do que 12 mil anos, por uma
passagem terrestre aberta entre a Sibéria e o Alasca antes do fim da última Era Glacial. Seu único objetivo na
vida era caçar mamutes, bisões e outros animais de
grande porte. Para isso, desenvolveram uma tecnologia
revolucionária: pontas de lança de pedra encontradas
pela primeira vez em 1932 no sítio de Clovis, no Estado
norte-americano do Novo México.
As evidências eram convincentes. O material estava
todo bem preservado e bem datado. Depois, o modelo
parecia resolver um mistério -e nada tranquiliza tanto
um cientista quanto um mistério resolvido. Mas, mais
do que isso, Clovis era um símbolo da supremacia norte-americana no continente, um destino
manifesto desde a Pré-História. "A tecnologia Clovis virou um ícone da expansão da cultura americana. Era a primeira
grande invenção americana, o equivalente na Idade do Gelo à Coca-Cola ou
aos bonés de beisebol", relata Dillehay.
Embora vários outros sítios, desde os
anos 70, fornecessem pistas fortes contra o modelo, só
Monte Verde conseguiu sacudi-lo de forma significativa -até porque foi escavado por um norte-americano.
Todos os outros eram descartados como má pesquisa
ou, simplesmente, loucura.
Mais do que um livro de arqueologia, "The Settlement
of the Americas" é um relato dos bastidores da pesquisa
na área nos EUA, da mentalidade e dos interesses (nem
sempre científicos) dos estudiosos envolvidos. Dillehay
conta, por exemplo, a história da comissão enviada à
Patagônia em 1911 pela sacrossanta Smithsonian Institution, de Washington, que tinha como objetivo -alcançado- desacreditar todos os sítios antigos da América do Sul. E a do arqueólogo Tom Lynch, que pesquisava no sul do continente nos anos 70, mas que teve seu
trabalho tão duramente criticado nos EUA que acabou
se alistando nas fileiras dos defensores do "Clovis-first".
Mas a ciência também está lá, e em doses mais do que
mastodônticas. Dillehay gasta dezenas de páginas explicando a prosaica diferença entre, por exemplo, uma
ponta de lança com canaletas e outra em rabo de peixe
(acredite, uma não tem nada a ver com a outra). E outras tantas fazendo uma compilação quase tediosa de
todos os sítios do Pleistoceno (mais de 11.500 anos
atrás) na América do Sul.
Mas nem só de evidências vive o livro.
Aliás, o grande mérito do autor está nas
perguntas que ele não responde, mas
que pouca gente ousava fazer nos tempos da linha dura de Clovis. Dillehay tenta, pela primeira vez, especular qual seria
o retrato dos primeiros habitantes do
continente, com base no material desenterrado em vários pontos da América do Sul. No lugar
de uma visão monobloco dos migrantes como nômades aventureiros recém-chegados da Ásia para, literalmente, fazer a América -e extinguir os mamutes-,
surge a de pessoas bem menos estúpidas do que o modelo fazia supor. Havia coleta, caça de animais pequenos e pesca. Também havia redes sociais bem definidas,
pelas quais grupos afastados uns dos outros por centenas de quilômetros trocavam regularmente alimentos,
matérias-primas e artefatos. Migrações só ocorriam em
último caso.
Piauí reabilitado A data de entrada dos primeiros
povoadores, no entanto, permanece uma interrogação.
Para chegar ao sul do Chile há 12.500 anos, os pioneiros
deveriam ter cruzado a "fronteira" há 15 ou 20 milênios.
Ou mais. Monte Verde, ao romper o paradigma, acabou
reabilitando sítios supostamente antigos como o do Boqueirão da Pedra Furada, no Piauí, escavado pela arqueóloga Niède Guidon. Datações obtidas por ela no local fazem a presença humana no continente recuar para
mais de 45 mil anos atrás, o que fez com que boa parte
da comunidade científica torcesse o nariz para o sítio.
Dillehay, no entanto, afirma ver semelhanças entre artefatos de pedra supostamente mais velhos que 12 mil
anos encontrados por Guidon e outros que ele próprio
desenterrou em Monte Verde e datou em 33 mil anos.
Mas é justamente na análise de outros sítios que o
americano cede à maior tentação de um arqueólogo:
achar que o seu próprio trabalho é o único acima de
qualquer suspeita. Mesmo hesitando em aceitar as datas antigas de Monte Verde, Dillehay se apressa em deixar claro que "a estratigrafia está intacta, as datas de radiocarbono são válidas e os artefatos humanos são genuínos". Todos os outros sítios antigos escavados por
outras pessoas são postos em dúvida.
No capítulo final, Dillehay pinta um quadro multicultural dos primeiros americanos. "A diversidade do registro arqueológico antigo sugere uma identidade americana compartilhada, enraizada em múltiplas migrações e, para pôr em termos contemporâneos, sem verdadeiras categorias de raça ou etnicidade". Ironicamente, é aí que ele revela fazer parte da mesma escola que
produz os paradigmas. Se a perspectiva durante o reinado de Clovis era a da "doutrina Monroe" arqueológica, na era do politicamente correto ela coincidentemente -e convenientemente- dá lugar ao multiculturalismo. No contar dos ossos, o viés dominante na Pré-História continua pertencendo ao Tio Sam. Ainda assim,
"The Settlement of the Americas" é um marco na arqueologia sul-americana. E merece ser lido.
The Settlement of the Americas - A New Prehistory
371 págs.,US$ 27,50
de Thomas D. Dillehay
Basic Books
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