São Paulo, domingo, 04 de março de 2001

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Para arqueólogo, os primeiros americanos poderiam ter vindo até mesmo da Europa

O subsolo é o limite

A sorte está lançada. Depois do forte abalo no paradigma "Clovis-first", a arqueologia americana ganhou asas. Pesquisas em número cada vez maior de sítios poderão até mesmo revelar ligações entre os ancestrais dos índios americanos e os europeus da Idade da Pedra. "Ninguém vai ficar esperando muito por isso, mas são possibilidades", diz o texano Thomas D. Dillehay, 52, cujos trabalhos no sul do Chile chacoalharam o modelo.
Apaixonado pela América Latina, Dillehay, que já trabalhou no Uruguai, no Peru, no México e no Chile, falou à Folha por telefone, de sua sala na Universidade do Kentucky, em Lexington.
O último capítulo do seu livro se chama "Questões Pendentes", onde o sr. enumera perguntas como quando o homem chegou à América. O sr. acha que essas questões serão respondidas um dia?
Com relação ao item "quando", eu acho que nós nunca iremos encontrar o primeiro sítio, ou precisar se foram 12 mil, 15 mil ou 25 mil anos. Acho que, com mais pesquisa no futuro e melhor exame dos sítios já descobertos, poderemos ter uma boa idéia de quando as pessoas chegaram à América, mas provavelmente tenhamos de ficar dizendo coisas como "há cerca de" 15 mil, 16 mil anos. Nunca seremos capazes de cravar uma data, ao menos não com a tecnologia disponível hoje.
A quem interessa saber quem foram os primeiros?
Há várias questões importantes envolvidas. Uma delas -e eu não estou classificando em ordem de importância- é que qualquer pessoa, em qualquer sociedade, em qualquer cultura, quer saber quem são os seus bisavós. E eu acho que, no Novo Mundo, dado o tamanho das populações indígenas, nós precisamos saber de onde essas primeiras pessoas vieram para entender a sua história e os seus mitos.
Segundo, quando arqueólogos e antropólogos físicos dão um passo para trás e olham para os relacionamentos passados entre seres humanos e o ambiente, é como se falassem do aquecimento global hoje. É importante para entender para onde estamos indo. Depois, a questão é interessante quando você olha para toda essa história de globalização e identidades nacionais e locais. A arqueologia é extremamente importante para que lugares como Zimbábue, Israel, países do Oriente Médio e México encontrem suas identidades étnicas.
Levou mais de 20 anos para que o sr., um americano, conseguisse apresentar evidências convincentes contra o paradigma Clovis. Podemos considerá-lo morto agora?
Existem alguns tipos turrões nos EUA que não largam o osso. Eu diria que, empiricamente, ele está morto. Mas ainda vive espiritualmente, encarnado em pessoas que dedicaram toda sua carreira a ele, ou em alguns acadêmicos mais jovens que não querem desistir dele porque vêem nisso a oportunidade de fazer o nome. E há alguns que são sinceramente dedicados a apoiar Clovis. Mas eu tenho visto uma mudança clara nos últimos três ou quatro anos em congressos científicos. Antigamente, quando você falava em pré-Clovis, as pessoas meio que deixavam você falar e quase nunca perguntavam nada. Agora, até a turma de Clovis levanta e diz: "Eu acho que nós precisamos olhar os sítios pré-Clovis, mas eu ainda apóio o paradigma". Hoje os defensores de Clovis foram reduzidos a 5% ou 10% da comunidade.
Qual foi a parte mais dura na época de encarar seus pares nos EUA, ao propor as datas de Monte Verde?
Eu acho que o pior de tudo foi apresentar as datações. As pessoas ficavam perguntando sobre contexto, contexto, contexto. Não queriam acreditar. Depois, eu acho que havia e ainda há um grande viés contra muitos sítios na América Latina. Isso remonta a 1911, quando Alês Hrlicka, da Smithsonian Institution, foi até a Argentina visitar um sítio que estava sendo escavado por uma equipe italiana, que especulava que havia um monte de sítios paleolíticos antigos ali. O que ele fez foi voltar a Washington com a idéia de que os sul-americanos estavam exagerando, fazendo má pesquisa, e de que seus dados estavam errados. Isso estabeleceu uma atitude entre muitos arqueólogos norte-americanos de que os sul-americanos não eram bem formados e que todos os seus dados tinham de ser avaliados minuciosamente. De certa forma, essa atitude ainda está conosco, hoje.
Havia preconceito contra pesquisadores latino-americanos?
Sim. Há um certo grau de chauvinismo norte-americano envolvido na avaliação da pesquisa e dos sítios antigos na América Latina. O problema é que os norte-americanos acham que eles devem ter a última palavra em qualquer assunto relativo a povos antigos. (Niède) Guidon escreveu muito sobre isso. É claro, nem todos os americanos pensam assim.
O sr. chegou a ser boicotado por causa da pesquisa em sítios da América do Sul?
Passei por isso no final da década de 70, quando comecei a trabalhar. A National Geographic Society cortou meu financiamento para pesquisa em Monte Verde. Durante o começo dos anos 80, era muito difícil conseguir dinheiro da National Science Foundation. Foram tempos difíceis até para meus estudantes obterem verba.
O que se pode esperar dessa fase "pós-Clovis" da arqueologia americana?
Em primeiro lugar, pesquisa interdisciplinar, com envolvimento da genética e da antropologia física, como o trabalho de Walter Neves com esqueletos. Acho que essas duas áreas podem fazer o que nós, arqueólogos, não podemos, como ligar populações diferentes e estabelecer padrões de migração.
Por outro lado, essas áreas precisam do contexto arqueológico para calibrar as datas. O que acho empolgante em tempos pós-Clovis é que não há mais modelo único, que reza que as pessoas vieram todas do nordeste da Ásia e eram caçadoras de mamutes. Esse modelo ainda funciona, mas para uma área muito específica, as Grandes Planícies dos EUA. Acho que as portas se abriram tanto que nós estamos querendo antecipar que as pessoas vieram em múltiplas ondas migratórias, não só do norte e do sul da Ásia, mas também de outras partes.
Quais, por exemplo?
Poderiam ter vindo até da Europa, deslocando-se através das calotas polares. É uma possibilidade remota, mas ainda é uma possibilidade. Há vários sítios ao longo da costa leste dos EUA que sugerem ligações com as culturas solutreanas da França e da Espanha. As tecnologias líticas são bastante similares. Há pedras que têm desenhos geométricos muito parecidos com os que vemos na Europa. De novo, é uma possibilidade remota, mas as assinaturas conectando essas duas áreas são fortes o suficiente para que nos perguntemos se não havia mesmo alguma coisa acontecendo. Há a possibilidade de pessoas chegando dos dois lados do oceano, da Europa e da Ásia ocidental e oriental. Talvez até da África, quem sabe? (Claudio Angelo)


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