São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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+ ciência

Chega ao Brasil livro em que James Watson apresenta sua visão triunfalista da genética

A propaganda honesta do DNA

Rogério Cassimiro/Folha Imagem
Boneco de James Watson feito pelo laboratório de Cold Spring Harbor, onde trabalha


DO COLUNISTA DA FOLHA

Com mais de dois anos de atraso, sai no Brasil a principal obra de propaganda da biologia molecular, "DNA - O Segredo da Vida", de James Dewey Watson, com Andrew Berry. Watson, além de ter descoberto em 1953, com Francis Crick, a estrutura molecular do ácido desoxirribonucléico, já foi descrito como o "diretor de marketing e líder vendedor do projeto genoma". É desse ponto de vista que narra meio século da história da biologia molecular.
Não se pode acusar Watson, pelo menos, de não ser franco e honesto quanto a seus propósitos. "Honest Jim", aliás, é um de seus apelidos. Logo na primeira página do catatau com 470 delas, ele e o auxiliar avisam: "Tomando o qüinquagésimo aniversário como uma oportunidade de parar e efetuar um balanço da situação em que nos encontramos, não temos vergonha em apresentar aqui uma visão estritamente pessoal da história e seus desdobramentos". Não é por falta de aviso, portanto.
O subtítulo da obra, "O Segredo da Vida", de certo modo já diz tudo. Em 28 de fevereiro de 1953, talvez fizesse muito sentido essa bravata sobre o poder oculto do DNA, proferida por Crick no pub Eagle, de Cambridge (Reino Unido), momentos depois da decifração da estrutura tridimensional da chamada "molécula elegante". Era diretamente proporcional à grande ignorância reinante sobre os mecanismos complexos da hereditariedade.
Cinqüenta anos depois, porém, e diante de tudo o que a própria pesquisa genômica revelou em matéria de modulação e regulação das "mensagens em código" contidas no DNA, recorrer a um slogan desses é indício de temeridade. Trata-se de insistir, desavergonhadamente mesmo, na mistificação do DNA como o princípio e o destino de tudo no mundo dos organismos.
É bom não esquecer, ainda, que o livro faz parte de um projeto mais amplo de mídia. Ele incluía, em 2003 (quando o livro foi lançado no mundo anglo-saxão), uma série de TV em cinco partes, um sítio na internet (www.dnai.org) e um DVD com o mesmo título do livro. Tudo isso destinado a educar os corações e mentes de estudantes e professores -um claro esforço de propaganda.
À primeira vista, apesar da ênfase mercadológica e propagandística, haveria muitas razões para comprar e ler o livro. Watson foi de fato um protagonista do fenômeno mais importante, na biologia, da segunda metade do século 20, a ascensão e a hegemonia da biologia molecular. Não só como co-descobridor da dupla hélice e ganhador do Nobel, mas como primeiro diretor do Projeto Genoma Humano e animador do Laboratório de Cold Spring Harbor, um centro irradiador dessa nova e eficaz maneira de conceber os seres vivos e de interferir nos seus mecanismos mais íntimos.
Até então, "Honest Jim" só tinha se dedicado a compilar anedotas e fuxicos paralelos à história do DNA, em seus dois livros autobiográficos e polêmicos: "A Dupla Hélice" e "Genes, Garotas e Gamow" (nenhum deles, aparentemente, jamais editado no Brasil). Com este "DNA", enfim, Watson parecia inclinado a abordar a ciência propriamente dita da molécula para um público leigo.
Desse ponto de vista, a obra até que se apresenta como uma fonte razoável de informação. Em 13 capítulos, ela cobre o principal dessa história, de Gregor Mendel ao genoma humano, passando pelas biotecnologias e pelos exames forenses de DNA. O didatismo é bem dosado e as ilustrações, fartas (consideravelmente reduzidas na edição brasileira, contudo). A presença de um detalhado índice remissivo, com 17 páginas em corpo miúdo, torna o volume útil para consulta.

Grão de sal
Tudo isso que o livro oferece, no entanto, tem de ser tomado com um grão de sal. Watson e seu coadjuvante não economizam nas hipérboles. Em certa altura (pág. 13), ao comentar as possibilidades de aplicação surgidas com a engenharia genética na década de 1970, escrevem:
"Novas e extraordinárias perspectivas científicas se abriram: enfrentar doenças genéticas, da fibrose cística ao câncer; revolucionar a justiça criminal com novos métodos de identificação genética, determinando a "impressão digital" mais íntima de cada ser; revisar a fundo nossas idéias sobre as origens humanas -quem somos e de onde viemos-, estudando a pré-história sob a nova ótica do DNA; e aperfeiçoar espécies agrícolas importantes com uma eficácia nunca antes sonhada."
Deixando de lado o tom francamente apologético e portanto incongruente com o discurso científico tradicional, é o caso de se deter sobre o conceito de "doença genética" que perpassa todo o livro. Para o leigo completo talvez não haja nada de mais em aproximar sob essa rubrica moléstias como fibrose cística e câncer, mas qualquer pessoa minimamente versada em genética percebe que tal aproximação não se faz sem alguma violência.
Só a fibrose cística é uma doença genética em sentido estrito, quando uma mutação localizada provoca um efeito em geral devastador (falha inata de metabolismo) e determinístico: quem tem aquela mutação necessariamente desenvolverá a doença. Os vários tipos de câncer, na melhor das hipóteses, envolvem a participação de múltiplos genes (podem ser dezenas) em processos que apenas elevam a probabilidade de desenvolver um tumor. O próprio Watson oferece descrições mais aceitáveis do papel dos genes em moléstias complexas, por exemplo na pág. 183, mas sempre dando a entender, e com isso contradizendo a descrição da complexidade, que a chave para curá-las só pode ser procurada e encontrada no DNA.
Em poucas palavras, ele vende a ilusão de soluções biotecnológicas para problemas complexos. Por isso não tem prurido de manter em circulação motes vazios como "Santo Graal" da biologia e "Livro da Vida" no genoma. O seu negócio é hegemonia, na biologia, e seleção dos melhores genes, na sociedade.
Watson é um homem de ontem (1953) com idéias de anteontem (eugenia), como deixou claro em recente entrevista para uma revista brasileira. O anacronismo é a marca de seu livro. Cabe, assim, perguntar, como fez M. Susan Lindee em sua resenha para o periódico "Science":
"Que forças fizeram esse emaranhado incoerente de misticismo, ignorância histórica, religiosidade, corporativismo, racionalidade tecnocrática exagerada, intemperança e ingenuidade social plausível para tantas pessoas?"

Respostas simples
Básico: as pessoas gostam de acreditar que há soluções simples para tudo. Daí vem o sucesso de crítica e de público da genômica, que promete a cura do câncer copiando 3 bilhões de letrinhas. Acredita quem quiser e se recusar a pensar.
(ML)

DNA - O Segredo da Vida
480 págs., R$ 75 de James Dewey Watson, com Andrew Berry. Companhia das Letras (rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32, 04532-002, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).



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