São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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Ciência em Dia

De símios e genomas

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Olhe bem para a macaca na capa da edição de quinta-feira do periódico britânico "Nature" (www.nature.com). Jolie, do Parque Nacional Kibale (Uganda), encara diretamente a lente do fotógrafo Kevin Langergraber, quer dizer, você. O que se pode entrever na profundidade negra de seus olhos?
Sentimento, talvez. Expressão, dirá alguém. Expectativa. Empatia? Percepção do outro, com certeza. Coisas desconcertantemente próximas da... humanidade.


É e sempre foi constrangedor, em certo sentido, esse parentesco humano com o chimpanzé (Pantroglodytes). Charles Darwin que o diga


É e sempre foi constrangedor, em certo sentido, esse parentesco humano com o chimpanzé (Pan troglodytes). Charles Darwin que o diga. Talvez por isso tenha se transformado numa espécie de mania a busca das diferenças fundamentais capazes de explicar e ancorar uma nítida separação entre a espécie humana e seu parente símio mais chegado (embora as semelhanças ainda pareçam bem mais intrigantes, para muitos).
Com a hegemonia da biologia molecular e a fé desmesurada no poder do DNA de tudo determinar, a resposta só poderia ser buscada nos genes. Aí começaram a surgir os problemas. Comparando por amostragem os dois genomas, estimou-se em menos de 2% as diferenças nas seqüências de DNA dos dois primatas.
Era muito pouco, obviamente, para explicar o abismo entre bandos de chimpanzés e as grandes civilizações humanas dos últimos 10 mil anos. Não havia termo de comparação entre os cérebros e as capacidades cognitivas das duas espécies. Parecia pouco provável encontrar a explicação para tamanha distância em umas tantas proteínas específicas do homem (e portanto em seus genes, que são trechos de DNA com a "receita" das proteínas).
A esperança foi depositada então no seqüenciamento (soletração) do genoma do chimpanzé. Dispondo já da seqüência humana, concluída em 2003, a expectativa dos biólogos moleculares era separar as diferenças fundamentais pela comparação direta. Entende-se, assim, o destaque dado à finalização do primeiro rascunho do genoma do primo-irmão do homem na última edição da "Nature".
São cerca de 60 páginas dedicadas ao chimpanzé. Nada que se compare ao escarcéu na edição de 15 de fevereiro de 2001, quando o mesmo periódico britânico circulou com o rascunho do genoma humano esparramado por 169 páginas editoriais e 277 de anúncios. Ainda assim, um número incomum.
Descobriu-se, enfim, o que nos faz humanos? Ainda não (claro, diriam os céticos dessa visão reducionista e determinista da biologia). Confirmou-se que apenas 1,23% dos dois genomas diverge no plano da seqüência propriamente dita de letras químicas de DNA. Houve alguma surpresa com a quantidade de cortes (deleções) e inserções de grandes trechos que os diferencia, coisa de 3%.
Como sempre nesse ramo de pesquisa, a conclusão é provisória: novos e extensos estudos ainda serão necessários para alcançar os objetivos propostos. Pois a promessa, mesmo -desvendar o que significa ser humano-, muita gente já acredita que não será cumprida, pelo menos não nessa igreja.

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro "O DNA" (Publifolha) e responsável pelo blog Ciência em Dia (http://cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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