São Paulo, terça-feira, 04 de outubro de 2005

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MEDICINA

Dois australianos dividem prêmio pela descoberta da Helicobacter pylori, que ataca estômago e está ligada a câncer

Ligação entre bactéria e úlcera rende Nobel

William Edwards/Reuters
Robin Warren (à esq.) e Barry Marshall brindam ao prêmio em restaurante de Perth, na Austrália


REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Valeu a pena o australiano Barry Marshall ter virado sua própria cobaia e engolido um caldo cheio da bactéria Helicobacter pylori para mostrar que o micróbio era o causador da gastrite. Ontem, 20 anos depois desse gesto meio amalucado, ele e seu colega J. Robin Warren receberam o Prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina e vão dividir cerca de US$ 1,3 milhão ofertado pelo Instituto Karolinska, na Suécia.
Os esforços dos dois revelaram quem era o principal culpado pela gastrite e pelas úlceras do estômago. Também apontaram para um efeito ainda mais devastador da bactéria: sua ação no estômago pode levar ao aparecimento do câncer. Hoje, em vez de recomendações de dieta e cirurgias complicadas, quem sofre desses problemas no estômago costuma resolvê-los com simples antibióticos, que matam a H. pylori.
"Eu me formei há 25 anos, e naquela época se dizia que o estômago era tão ácido que não seria capaz de abrigar seres vivos", conta o médico Luís Cristóvão de Moraes Sobrino Pôrto, da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). "O fato de eles mostrarem que esse ambiente não era estéril foi uma revolução." Pelo visto, o comitê sueco acha a mesma coisa.
"Eu fiquei chocado [com o prêmio]", disse Warren, 68, à agência de notícias TT, da Suécia. "Achava que era uma descoberta nova e emocionante, mas não acreditava que fosse o tipo de achado que leva você a ganhar o Nobel." O celular da Warren tocou justamente quando ele e Marshall estavam num restaurante juntos, prestes a começar a comer. "Realmente tínhamos motivo para celebrar. Barry e eu moramos em lugares diferentes agora, mas nos vemos uma ou duas vezes por ano."

Micróbio redescoberto
A trajetória que levou a dupla australiana ao prêmio começou em 1979, quando Warren, então patologista do Hospital Real de Perth, observou estranhas bactérias em biópsias do estômago humano. Elas só estavam presentes em tecidos inflamados, e se protegiam da acidez do estômago por viver debaixo da camada de muco que reveste o órgão.
Uma olhadinha na literatura mostrou a Warren que, no longínquo ano de 1875, anatomistas alemães já tinham isolado micróbios parecidos no estômago. Porém, como eles não conseguiram cultivar as bactérias em laboratório, os achados do século 19 acabaram sendo esquecidos.
Com a ajuda de Marshall, Warren finalmente deu um jeito de produzir os microrganismos em cultura. "Até então, a úlcera era considerada uma doença incurável, sendo necessária, em algumas situações, intervenção cirúrgica", diz Dulciene Maria de Magalhães Queiroz, do Laboratório de Pesquisa em Bacteriologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Acreditava-se que o estresse e a alimentação muito ácida estivessem entre as causas da úlcera e da gastrite. Por isso, o trabalho dos dois foi inicialmente recebido com ceticismo.
Foi quando Marshall, hoje na Universidade da Austrália Ocidental, decidiu bancar a cobaia, juntamente com outro voluntário saudável. Depois de ingerir o micróbio, os dois desenvolveram gastrite, embora a de Marshall tenha desaparecido sem necessidade de tratamento mais tarde. Aos poucos, a ligação entre a H. pylori e as duas doenças passou a ser aceita pelos pesquisadores, e o mecanismo de ação do micróbio, elucidado.
De forma simplificada, tudo indica que o micróbio manipula com esperteza surpreendente o estômago do hospedeiro. Quando a acidez estomacal está alta demais para o gosto da criatura, ela injeta uma proteína (que recebeu, em inglês, o acrônimo CagA) nas células epiteliais da parede do estômago. Isso inicia uma inflamação, a qual, por sua vez, faz com que a acidez do estômago diminua. Outra proteína, chamada VacA, causa ainda mais danos às células do estômago e impede que o sistema de defesa do organismo entre em ação.

Antibiótico nela
Nem foi preciso elucidar todo esse mecanismo sofisticado, no entanto, para que a maneira de tratar as doenças de estômago mudasse radicalmente -graças à descoberta dos australianos.
"O tratamento com antibióticos para a erradicação da Helicobacter pylori e, conseqüentemente, a cura da doença ulcerosa péptica [do estômago] foi um marco", afirma Dulciene Queiroz, que estuda a interação entre a bactéria e os seres humanos ao lado de Taciana Soares, Andreia Rocha e Gifone Aguiar Rocha.
Além do mais, a metodologia desenvolvida pelos pesquisadores tornou-se um meio relativamente simples de verificar o risco de desenvolver as doenças. "Hoje tornou-se uma coisa padronizada, todo mundo faz biópsia gástrica para isso", afirma Pôrto. Mais informações sobre a dupla e seu trabalho podem ser vistas na internet (www.hpylori.com.au).

Com agências internacionais


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