São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

Próximo Texto | Índice

+ ciência

Zoólogo irlandês introduz ao público uma nova área da biologia evolutiva

O microcavalo e os rumos da evolução

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Com exceção dos poucos masoquistas para quem livro bom é livro difícil, o primeiro parágrafo de uma obra costuma ser crucial. É quase impossível, por exemplo, não ser fisgado pelo começo a seguir: "Você me pede para descrever um cavalo; respondo da seguinte maneira: um cavalo é um animal microscópico incapaz de se movimentar. Consiste em um número bastante pequeno de células (algumas centenas, ao contrário dos trilhões encontrados num ser humano). Essas células não estão organizadas em órgãos ou sistemas sofisticados. O cavalo parasita outro animal e, portanto, adquire recursos de seu hospedeiro. É completamente incapaz de adquirir energia de qualquer outro jeito. Não há registro fóssil de sua existência. Até onde sabemos, pode não ter havido nada parecido com um cavalo antes da aurora da arte nas cavernas da França, quando nossos ancestrais fizeram desenhos impressionantes de cavalos, entre outras coisas".
Basta um pouco de atenção para perceber que há método no meio dessa loucura, como o zoólogo irlandês Wallace Arthur, autor de "Biased Embryos and Evolution" (algo como "Embriões Enviesados e Evolução"), não cessa de advertir o leitor. É claro que o cavalo microscópico é um embrião, um "parasita" que tira seu sustento do organismo materno. Mas o autor já mostra de cara a disposição de agarrar sua audiência pelo colarinho e ressaltar que a visão que muitos leigos e especialistas têm sobre biologia e evolução precisa de uma sacudida. Os seres vivos não têm ciclos de vida, eles são ciclos de vida, diz Arthur. Assim como o Universo revelado por Einstein, a vida é quadridimensional -as três do espaço mais o tempo.
Por enquanto, parece só um saudável e inócuo convite para deixar de lado o senso comum, mas o pesquisador da Universidade Nacional da Irlanda em Galway tem planos mais ambiciosos na manga. Sua intenção é apresentar pela primeira vez ao leitor leigo o nascente campo da biologia evolutiva desenvolvimental ("evo-devo" para os íntimos ou preguiçosos). Para Arthur, a "evo-devo" chegou para decretar o fim da monarquia absoluta da seleção natural na hora de explicar como os seres vivos (em especial os animais) se tornaram o que são hoje.
É claro que o principal argumento de Charles Darwin (1809-1882), o pai da teoria evolutiva, ainda vale. A interação de animais e plantas com outros organismos e com o ambiente seleciona os mais aptos e determina, em parte, quem vai sobreviver e moldar as gerações futuras. Mas outro tipo de seleção pode estar acontecendo dentro de cada animal, ou mesmo no útero ou ovo que o abrigou. Uma triagem capaz de determinar tanto os limites quanto as possibilidades do que ele pode se tornar.

Viés embrionário
É aí que entram os "embriões enviesados" do título. A maneira como cada óvulo fecundado se transforma num bebê e numa criatura adulta está longe de ser neutra. O processo envolve uma série tão complexa e azeitada de passos que, não importa o que aconteça, o mundo real nunca vai abrigar bichos como Sleipnir, o cavalo de oito patas do deus nórdico Odin. Há um viés que encaminha o embrião para uma determinada estrada de desenvolvimento e impede que ele alcance outra, mesmo que seu ambiente pareça oferecer um mundo de possibilidades.
A chamada Moderna Síntese, que uniu as idéias de Darwin à ecologia e à genética modernas a partir dos anos 1930, acabou transformando esse fato fundamental em mera nota de rodapé, justamente por se concentrar demais na seleção natural, acusa Arthur. No fim das contas, o organismo, o indivíduo vivo, é que acabou sendo esquecido. Todo mundo concordava que os genes evoluem por mutação; as populações, por seleção natural; e o organismo... bem, para esse primo pobre nem terminologia criaram.
O zoólogo se dedica a reparar a injustiça em pouco mais de 200 páginas saborosas, nas quais cumpre a promessa de não criar obstáculos demais para o leitor leigo (não há um só nome científico em latim, por exemplo). Arthur brinca que o livro pode virar vítima da síndrome "sanduíche de lama com duas fatias de pão delicioso", mas o humor e o didatismo aparecem tanto no recheio quanto na cobertura.
Ele faz questão de frisar o quanto a "evo-devo" deve à inspiração de gente como o paleontólogo americano Stephen Jay Gould, morto em 2002, com sua sugestão de que o desenvolvimento embrionário restringe de inúmeras maneiras a evolução de uma espécie. Não parece haver outro jeito de explicar, por exemplo, o que aconteceu depois da chamada Explosão Cambriana, há 543 milhões de anos. Antes disso, houve um período durante o qual a evolução dos animais já estava acontecendo, mas ainda engatinhava. Se é que dá para confiar no registro fóssil, os animais pré-cambrianos eram raros, pouco diversificados e sem muita relação com as criaturas de hoje.
Então, na aurora do Cambriano e num período bem curto em termos geológicos, a vida animal explode em diversidade de formas, funções e tamanhos. "De repente", todos os filos que existem hoje fazem sua primeira aparição, junto com os 35 tipos básicos de corpo vistos em qualquer bicho da Terra moderna.
O problema do raciocínio de Gould foi se concentrar apenas no aspecto negativo da equação e não cogitar que o viés embrionário pode ser também uma força criativa. Arthur tenta suprir essa lacuna com um conceito emprestado, ironicamente, de Sewall Wright, geneticista americano que, nos anos 1930, acabou ajudando a criar a ênfase exagerada na população e nos genes criticada pelo autor. Trata-se da idéia da topografia adaptativa -um espaço virtual no qual uma espécie evolui ao longo do tempo, pontuado de "vales" (lugares desfavoráveis nas quais ela pode até se extinguir) e "picos" que ela pode galgar. A metáfora é curiosamente parecida com a do Monte Improvável, forjada por Richard Dawkins, zoólogo da Universidade de Oxford, Reino Unido.
No entanto, enquanto Dawkins ressalta a evolução lenta e gradual, Arthur enfatiza as possibilidades da topografia adaptativa. Para ele, é a reprogramação do desenvolvimento que permite que uma espécie se transforme e evolua. Não dá para produzir um adulto diretamente a partir de outro adulto.
O viés embrionário faz com que seja muito mais viável e provável agir sobre certas variantes do que sobre outras. Assim, ele pode empurrar uma espécie para determinado Aconcágua da topografia adaptativa, enquanto o Everest, que até poderia estar perto, segue inacessível.
Os detalhes de como isso ocorre estão apenas começando a ser elucidados experimentalmente. Hoje, a capacidade de desligar diretamente um gene e ver o que acontece revela fenômenos do desenvolvimento que têm impacto direto nas diferenças evolutivas. Um dos exemplos já incorporados pela maioria dos biólogos é a heterocronia -literalmente "tempo diferente". A mera alteração do momento em que um conjunto de genes é ativado leva a grandes diferenças morfológicas.
A ênfase de Arthur no desenvolvimento embrionário também ajuda a resgatar uma idéia que ainda é parece cheirar a misticismo para muitos estudiosos da evolução. Trata-se da chamada seleção interna, que já chegou a ser concebida como misteriosos "impulsos internos" de evoluir. No entanto, torna-se cada vez mais claro que a seleção mais feroz talvez não seja a imposta pelo ambiente externo, mas a que põe sob seu crivo a adequação entre as partes internas de um organismo.
Se há algo insatisfatório no livro, é justamente a sensação de que faltam mais exemplos concretos das idéias que Arthur expõe. É o defeito inevitável de um campo que ainda está nascendo. Seja como for, a obra passa a imagem de um mundo mais intrincado e fascinante do que os livros didáticos querem fazer crer. É o mínimo que se espera do fenômeno mais fascinante do Universo.

Próximo Texto: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: A história do Universo em expansão
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.