|
Próximo Texto | Índice
+ ciência
Zoólogo irlandês introduz ao público uma nova área da biologia evolutiva
O microcavalo e os rumos da evolução
REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Com exceção dos poucos masoquistas para quem livro
bom é livro difícil, o primeiro parágrafo de uma obra
costuma ser crucial. É quase impossível, por exemplo, não ser fisgado
pelo começo a seguir: "Você me pede para descrever um cavalo; respondo da seguinte maneira: um cavalo é um animal microscópico incapaz de se movimentar. Consiste
em um número bastante pequeno
de células (algumas centenas, ao
contrário dos trilhões encontrados
num ser humano). Essas células não
estão organizadas em órgãos ou sistemas sofisticados. O cavalo parasita
outro animal e, portanto, adquire recursos de seu hospedeiro. É completamente incapaz de adquirir energia
de qualquer outro jeito. Não há registro fóssil de sua existência. Até
onde sabemos, pode não ter havido
nada parecido com um cavalo antes
da aurora da arte nas cavernas da
França, quando nossos ancestrais fizeram desenhos impressionantes de
cavalos, entre outras coisas".
Basta um pouco de atenção para
perceber que há método no meio
dessa loucura, como o zoólogo irlandês Wallace Arthur, autor de "Biased Embryos and Evolution" (algo
como "Embriões Enviesados e Evolução"), não cessa de advertir o leitor. É claro que o cavalo microscópico é um embrião, um "parasita" que
tira seu sustento do organismo materno. Mas o autor já mostra de cara
a disposição de agarrar sua audiência pelo colarinho e ressaltar que a
visão que muitos leigos e especialistas têm sobre biologia e evolução
precisa de uma sacudida. Os seres
vivos não têm ciclos de vida, eles são
ciclos de vida, diz Arthur. Assim como o Universo revelado por Einstein, a vida é quadridimensional
-as três do espaço mais o tempo.
Por enquanto, parece só um saudável e inócuo convite para deixar
de lado o senso comum, mas o pesquisador da Universidade Nacional
da Irlanda em Galway tem planos
mais ambiciosos na manga. Sua intenção é apresentar pela primeira
vez ao leitor leigo o nascente campo
da biologia evolutiva desenvolvimental ("evo-devo" para os íntimos
ou preguiçosos). Para Arthur, a
"evo-devo" chegou para decretar o
fim da monarquia absoluta da seleção natural na hora de explicar como os seres vivos (em especial os
animais) se tornaram o que são hoje.
É claro que o principal argumento
de Charles Darwin (1809-1882), o pai
da teoria evolutiva, ainda vale. A interação de animais e plantas com
outros organismos e com o ambiente seleciona os mais aptos e determina, em parte, quem vai sobreviver e
moldar as gerações futuras. Mas outro tipo de seleção pode estar acontecendo dentro de cada animal, ou
mesmo no útero ou ovo que o abrigou. Uma triagem capaz de determinar tanto os limites quanto as possibilidades do que ele pode se tornar.
Viés embrionário
É aí que entram os "embriões enviesados" do título. A maneira como
cada óvulo fecundado se transforma
num bebê e numa criatura adulta está longe de ser neutra. O processo
envolve uma série tão complexa e
azeitada de passos que, não importa
o que aconteça, o mundo real nunca
vai abrigar bichos como Sleipnir, o
cavalo de oito patas do deus nórdico
Odin. Há um viés que encaminha o
embrião para uma determinada estrada de desenvolvimento e impede
que ele alcance outra, mesmo que
seu ambiente pareça oferecer um
mundo de possibilidades.
A chamada Moderna Síntese, que
uniu as idéias de Darwin à ecologia e
à genética modernas a partir dos
anos 1930, acabou transformando
esse fato fundamental em mera nota
de rodapé, justamente por se concentrar demais na seleção natural,
acusa Arthur. No fim das contas, o
organismo, o indivíduo vivo, é que
acabou sendo esquecido. Todo
mundo concordava que os genes
evoluem por mutação; as populações, por seleção natural; e o organismo... bem, para esse primo pobre
nem terminologia criaram.
O zoólogo se dedica a reparar a injustiça em pouco mais de 200 páginas saborosas, nas quais cumpre a
promessa de não criar obstáculos
demais para o leitor leigo (não há
um só nome científico em latim, por
exemplo). Arthur brinca que o livro
pode virar vítima da síndrome "sanduíche de lama com duas fatias de
pão delicioso", mas o humor e o didatismo aparecem tanto no recheio
quanto na cobertura.
Ele faz questão de frisar o quanto a
"evo-devo" deve à inspiração de
gente como o paleontólogo americano Stephen Jay Gould, morto em
2002, com sua sugestão de que o desenvolvimento embrionário restringe de inúmeras maneiras a evolução
de uma espécie. Não parece haver
outro jeito de explicar, por exemplo,
o que aconteceu depois da chamada
Explosão Cambriana, há 543 milhões de anos. Antes disso, houve
um período durante o qual a evolução dos animais já estava acontecendo, mas ainda engatinhava. Se é que
dá para confiar no registro fóssil, os
animais pré-cambrianos eram raros,
pouco diversificados e sem muita relação com as criaturas de hoje.
Então, na aurora do Cambriano e
num período bem curto em termos
geológicos, a vida animal explode
em diversidade de formas, funções e
tamanhos. "De repente", todos os filos que existem hoje fazem sua primeira aparição, junto com os 35 tipos básicos de corpo vistos em qualquer bicho da Terra moderna.
O problema do raciocínio de
Gould foi se concentrar apenas no
aspecto negativo da equação e não
cogitar que o viés embrionário pode
ser também uma força criativa. Arthur tenta suprir essa lacuna com
um conceito emprestado, ironicamente, de Sewall Wright, geneticista
americano que, nos anos 1930, acabou ajudando a criar a ênfase exagerada na população e nos genes criticada pelo autor. Trata-se da idéia da
topografia adaptativa -um espaço
virtual no qual uma espécie evolui
ao longo do tempo, pontuado de
"vales" (lugares desfavoráveis nas
quais ela pode até se extinguir) e "picos" que ela pode galgar. A metáfora
é curiosamente parecida com a do
Monte Improvável, forjada por Richard Dawkins, zoólogo da Universidade de Oxford, Reino Unido.
No entanto, enquanto Dawkins
ressalta a evolução lenta e gradual,
Arthur enfatiza as possibilidades da
topografia adaptativa. Para ele, é a
reprogramação do desenvolvimento
que permite que uma espécie se
transforme e evolua. Não dá para
produzir um adulto diretamente a
partir de outro adulto.
O viés embrionário faz com que
seja muito mais viável e provável
agir sobre certas variantes do que sobre outras. Assim, ele pode empurrar uma espécie para determinado
Aconcágua da topografia adaptativa, enquanto o Everest, que até poderia estar perto, segue inacessível.
Os detalhes de como isso ocorre
estão apenas começando a ser elucidados experimentalmente. Hoje, a
capacidade de desligar diretamente
um gene e ver o que acontece revela
fenômenos do desenvolvimento que
têm impacto direto nas diferenças
evolutivas. Um dos exemplos já incorporados pela maioria dos biólogos é a heterocronia -literalmente
"tempo diferente". A mera alteração
do momento em que um conjunto
de genes é ativado leva a grandes diferenças morfológicas.
A ênfase de Arthur no desenvolvimento embrionário também ajuda a
resgatar uma idéia que ainda é parece cheirar a misticismo para muitos
estudiosos da evolução. Trata-se da
chamada seleção interna, que já chegou a ser concebida como misteriosos "impulsos internos" de evoluir.
No entanto, torna-se cada vez mais
claro que a seleção mais feroz talvez
não seja a imposta pelo ambiente externo, mas a que põe sob seu crivo a
adequação entre as partes internas
de um organismo.
Se há algo insatisfatório no livro, é
justamente a sensação de que faltam
mais exemplos concretos das idéias
que Arthur expõe. É o defeito inevitável de um campo que ainda está
nascendo. Seja como for, a obra passa a imagem de um mundo mais intrincado e fascinante do que os livros didáticos querem fazer crer. É o
mínimo que se espera do fenômeno
mais fascinante do Universo.
Próximo Texto: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: A história do Universo em expansão Índice
|