São Paulo, sexta-feira, 06 de fevereiro de 2004

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LEI DE BIOSSEGURANÇA

Projeto estava ameaçado por bancada evangélica, caso não proibisse uso de célula embrionária

Lobby religioso veta pesquisa com embrião

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Além da articulação dos ambientalistas para modificar a Lei de Biossegurança, o deputado Renildo Calheiros (PC do B-PE), relator do projeto na Câmara, enfrentou pressão de evangélicos para modificar o texto que foi a plenário na madrugada de ontem.
A bancada evangélica na Casa -55 deputados- ameaçou votar contra o projeto caso não fosse vetada a manipulação de embriões humanos para fim de clonagem terapêutica, conforme previa o relatório anterior, de autoria do ex-líder do governo Aldo Rebelo (PC do B-SP).
Células-tronco têm o poder de se transformar em células especializadas do corpo e por isso são usadas em pesquisas com o objetivo de reconstituir órgãos e tecidos danificados. Pelo novo texto, só poderão ser obtidas de cordões umbilicais, medula óssea e sangue. O veto à alteração de código genético humano permanece.
Na mesa de negociações, os evangélicos ganharam o apoio dos católicos, ampliando o quórum para cerca de 120 deputados. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) enviou representantes ao Congresso. Diante da ameaça de revés em plenário, veio a concessão de Calheiros.

Questão do aborto
Os evangélicos argumentavam que a permissão para manipulação de embriões humanos "descriminalizaria o aborto". "Nós entendemos que a vida começa na concepção. Cada um de nós um dia já foi embrião. Creio que foi uma vitória da vida", disse o líder da Frente Evangélica na Casa, Adelor Vieira (PMDB-SC), que conduziu as negociações ao lado do deputado petista Henrique Afonso (AC).
Segundo Vieira, os evangélicos "estavam preparados para medidas extremas", caso não houvesse mudanças no texto. Apresentariam dois DVS (destaque para votação em separado) para suprimir o artigo relacionado ao tema.
O líder dos evangélicos disse ainda "não acreditar que haja alguém disposto a mudar esse ponto do projeto no Senado", onde a frente tem três congressistas.
Pesquisadores da área não gostaram da decisão. Para Lygia da Veiga Pereira, do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, a proibição do uso de células extraídas de embriões para pesquisa estabelecida pelo projeto aprovado na Câmara representa um sério entrave. "Mesmo nos EUA, o que você tem é uma proibição para o uso de verbas federais na produção de células-tronco, mas não um veto total à pesquisa", disse. "O que a gente está fazendo aqui é uma limitação muito grande."
Para ela, o dano resultará em dependência de esforços realizados por cientistas no exterior. "O que eu teria de fazer? Poderia comprar essas células nos EUA, vou ter de encontrar isso lá fora. E ainda perco a chance de treinar aqui pessoas que pudessem desenvolver essas linhagens. É um marco de limitação do progresso da ciência no país. A proibição, eu acho, é um atraso."

Contexto internacional
Ela aponta que há outros países ainda mais permissivos que os Estados Unidos, que não autorizam o uso de verbas federais nesse tipo de pesquisa, mas não vetam expressamente os estudos. "Além do Reino Unido, em Israel eles são bem liberais e na China também", diz Pereira. Canadá e Austrália também liberaram as pesquisas. A União Européia ainda está debatendo a possibilidade de unificar as regras para uso de células de embriões em pesquisa.
Independentemente da posição final adotada na legislação brasileira, a bióloga também aponta a necessidade de esclarecer alguns pontos confusos, que indicam possíveis exceções à proibição no caso de "clonagem terapêutica com células pluripotentes".
"Clonagem terapêutica, na definição científica, pressupõe gerar um embrião a partir de transferência nuclear. Então, o que eles estão chamando de "clonagem terapêutica'? E mais, o que eles chamam de "embrião'? Qual a definição de "embrião'? Isso não está definido no projeto de lei." Ela pergunta: "Será que isso foi escrito de forma consciente? Ou é fruto de uma ignorância?"
Os mesmos problemas são apontados por Mayana Zatz, também da USP. "Pelos poucos depoimentos que eu ouvi, as pessoas que votaram não estão informadas. Só se fala de Parkinson e Alzheimer, mas não se fala das doenças degenerativas que matam crianças e jovens", diz.
"E parece que há uma grande confusão de conceitos, entre clonagem terapêutica, terapia celular, células-tronco etc."
A pesquisadora se propõe a ir a Brasília para ajudar no processo. "Eu iria com o maior prazer, explicar numa linguagem que todos os deputados possam entender."


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