São Paulo, sexta-feira, 06 de fevereiro de 2004

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MEDICINA

Vírus saltou de aves para homens e mudou pouco

Proteína alterada originou flagelo da gripe espanhola, dizem estudos

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

O vírus mais letal que já afetou a humanidade provavelmente precisou de muito pouco para infectar e matar mais de 20 milhões de pessoas em 1918. De acordo com pesquisadores nos EUA e no Reino Unido, bastaram algumas alterações numa proteína de sua superfície para que o vírus da gripe espanhola se tornasse um assassino de proporções globais.
Aliás, o lema do patógeno poderia ser "quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas". Exceto essa alteração, a criatura é a cópia exata dos vírus da gripe encontrados em aves, e sua violência pode ter derivado exatamente desse fato. Com essa configuração "alienígena", ele teria tomado de assalto o sistema de defesa do organismo, desacostumado a lidar com inimigos assim.
As conclusões vêm de um verdadeiro trabalho de detetive molecular coordenado por sir John Skehel, do Instituto Nacional de Pesquisa Médica em Londres, e Ian Wilson, do Instituto de Pesquisa Scripps, na Califórnia (Estados Unidos). Trabalhando independentemente, eles decifraram a estrutura da hemaglutinina, proteína do vírus que lhe permite invadir as células do hospedeiro.
O trabalho, descrito em artigos publicados on-line pela revista "Science" (www.sciencexpress.org), foi especialmente complicado porque a gripe espanhola, que matou mais gente que os combates da Primeira Guerra Mundial com a qual coincidiu, aconteceu quando ninguém ainda sonhava em isolar um vírus.

Restos mortais
Mesmo assim, amostras do pulmão de soldados americanos que morreram da doença foram preservadas, e fragmentos do material genético do vírus foram obtidos de vítimas esquimós que acabaram enterradas no "permafrost" (solo congelado) do Alasca.
Com isso, os cientistas conseguiram usar fragmentos do RNA (a molécula-irmã do DNA que também carrega informação genética) extraído das vítimas para reconstruir a hemaglutinina. Usando a técnica da cristalografia de raios X, que "congela" a proteína num cristal e a submete a radiação, a equipe conseguiu traçar sua estrutura molecular. Skehel repetiu a operação com dois outros tipos de vírus da gripe.
"O interessante é que, embora todos esses subtipos tenham vindo de aves, a H1 [como é chamada a hemaglutinina da gripe espanhola] é bastante diferente das outras duas, tendo mudado muito pouco em relação ao que era no vírus aviário", afirmou Skehel.
Mesmo assim, houve mudanças, pequenas, mas importantes. O trecho da proteína que se liga diretamente ao receptor (fechadura química) da superfície das células dos pulmões estava ligeiramente alterado, posicionado de forma diferente. Essa alteração sutil permitia que o vírus abrisse um poro na célula e penetrasse sem que, ao mesmo tempo, o sistema de defesa do organismo o reconhecesse e contra-atacasse.
Tudo isso tornava o vírus da gripe espanhola único, e um desafio temível para o sistema imune humano. Tanto é assim que ele matou principalmente adultos jovens, em geral o grupo mais resistente à gripe. Há quem suponha que idosos estariam mais protegidos por ter sobrevivido a epidemias anteriores de gripe, mas isso não explica por que as crianças também não foram afetadas tão duramente pela doença.
Seja como for, os achados são ao mesmo tempo um alívio e um aviso para sobre a atual gripe do frango, que afeta os países do Extremo Oriente. A doença ainda não é um desastre porque o vírus não "aprendeu" a passar de pessoa para pessoa. Mas é preciso pouco para que isso aconteça.


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