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MEDICINA
Vírus saltou de aves para homens e mudou pouco
Proteína alterada originou flagelo da gripe espanhola, dizem estudos
REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
O vírus mais letal que já afetou a
humanidade provavelmente precisou de muito pouco para infectar e matar mais de 20 milhões de
pessoas em 1918. De acordo com
pesquisadores nos EUA e no Reino Unido, bastaram algumas alterações numa proteína de sua superfície para que o vírus da gripe
espanhola se tornasse um assassino de proporções globais.
Aliás, o lema do patógeno poderia ser "quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as
mesmas". Exceto essa alteração, a
criatura é a cópia exata dos vírus
da gripe encontrados em aves, e
sua violência pode ter derivado
exatamente desse fato. Com essa
configuração "alienígena", ele teria tomado de assalto o sistema de
defesa do organismo, desacostumado a lidar com inimigos assim.
As conclusões vêm de um verdadeiro trabalho de detetive molecular coordenado por sir John
Skehel, do Instituto Nacional de
Pesquisa Médica em Londres, e
Ian Wilson, do Instituto de Pesquisa Scripps, na Califórnia (Estados Unidos). Trabalhando independentemente, eles decifraram a
estrutura da hemaglutinina, proteína do vírus que lhe permite invadir as células do hospedeiro.
O trabalho, descrito em artigos
publicados on-line pela revista
"Science" (www.sciencexpress.org), foi especialmente complicado porque a gripe espanhola, que
matou mais gente que os combates da Primeira Guerra Mundial
com a qual coincidiu, aconteceu
quando ninguém ainda sonhava
em isolar um vírus.
Restos mortais
Mesmo assim, amostras do pulmão de soldados americanos que
morreram da doença foram preservadas, e fragmentos do material genético do vírus foram obtidos de vítimas esquimós que acabaram enterradas no "permafrost" (solo congelado) do Alasca.
Com isso, os cientistas conseguiram usar fragmentos do RNA
(a molécula-irmã do DNA que
também carrega informação genética) extraído das vítimas para
reconstruir a hemaglutinina.
Usando a técnica da cristalografia
de raios X, que "congela" a proteína num cristal e a submete a radiação, a equipe conseguiu traçar
sua estrutura molecular. Skehel
repetiu a operação com dois outros tipos de vírus da gripe.
"O interessante é que, embora
todos esses subtipos tenham vindo de aves, a H1 [como é chamada
a hemaglutinina da gripe espanhola] é bastante diferente das
outras duas, tendo mudado muito pouco em relação ao que era no
vírus aviário", afirmou Skehel.
Mesmo assim, houve mudanças, pequenas, mas importantes.
O trecho da proteína que se liga
diretamente ao receptor (fechadura química) da superfície das
células dos pulmões estava ligeiramente alterado, posicionado de
forma diferente. Essa alteração
sutil permitia que o vírus abrisse
um poro na célula e penetrasse
sem que, ao mesmo tempo, o sistema de defesa do organismo o
reconhecesse e contra-atacasse.
Tudo isso tornava o vírus da gripe espanhola único, e um desafio
temível para o sistema imune humano. Tanto é assim que ele matou principalmente adultos jovens, em geral o grupo mais resistente à gripe. Há quem suponha
que idosos estariam mais protegidos por ter sobrevivido a epidemias anteriores de gripe, mas isso
não explica por que as crianças
também não foram afetadas tão
duramente pela doença.
Seja como for, os achados são ao
mesmo tempo um alívio e um aviso para sobre a atual gripe do
frango, que afeta os países do Extremo Oriente. A doença ainda
não é um desastre porque o vírus
não "aprendeu" a passar de pessoa para pessoa. Mas é preciso
pouco para que isso aconteça.
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