São Paulo, domingo, 06 de abril de 2008

Texto Anterior | Índice

+ Marcelo Leite

Boimate e boimano


O 1º de abril também faz vítimas no jornalismo científico

Poderia ser o nome de uma dupla sertaneja pós-moderna, mas são apenas dois híbridos improváveis separados por 25 anos de progresso tecnobiológico. O primeiro foi uma fraude. O segundo é realidade, embora também tenha vindo à luz num 1º de abril.
"Boimate" virou gíria jornalística no Brasil por obra da revista "Veja".
Em 27 de abril de 1983, noticiou: "Num ousado avanço da biologia molecular, dois biólogos de Hamburgo, na Alemanha, fundiram pela primeira vez células animais com células vegetais -as de um tomateiro com as de um boi. Deu certo." Seus editores haviam caído no 1º de abril da revista britânica "New Scientist".
"Boimano" é invenção da coluna -o nome, vale dizer. Porque o híbrido de boi com humano de fato existe. Ou melhor: existiu (as células morreram três dias depois). Para ser preciso, era um híbrido de vaca com gente.
Como a notícia foi divulgada pela BBC na terça-feira, 1º de abril, muitos jornalistas devem ter desconfiado.
Em reportagem de Fergus Walsh, a BBC anunciava que pesquisadores da Universidade de Newcastle haviam fabricado um embrião-quimera, parte vacum, parte humano.
Era verdade, mas faltava um elemento crucial da notícia científica: a validação, em geral dada por um periódico acadêmico que submeta estudos recebidos à avaliação crítica de especialistas ("peer-review"). O trabalho de Lyle Armstrong não tinha ainda gerado artigo algum.
A confirmação partiu da própria universidade: Armstrong havia apresentado dados preliminares sobre os híbridos numa palestra no Knesset, o Parlamento de Israel, em 27 de março.
Logo na segunda frase do comunicado, a universidade avisava: "Tais dados precisam ser verificados e o Dr. Armstrong e a Universidade de Newcastle seguirão o sistema de "peer review" [literalmente, revisão por pares], como é procedimento normal."
O texto citava John Burn, diretor do Instituto de Genética Humana de Newcastle: "Se a equipe puder produzir células que sobrevivam em cultura, isso abrirá a porta para uma compreensão melhor de processos patológicos sem ter de empregar óvulos humanos preciosos".
"Células cultivadas usando óvulos animais não podem ser usadas para tratar pacientes, por razões de segurança, mas ajudarão a aproximar o dia em que novas terapias com células-tronco estarão disponíveis", afirmou ainda Burn.
Ouvido pela agência Reuters, o conhecido bioeticista americano Arthur Caplan considerou que alguns poucos estudos desse tipo seriam "moralmente justificáveis". Já a Igreja Católica britânica qualificou o experimento como "monstruoso".
O que Armstrong fez foi retirar o núcleo (parte da célula onde ficam os cromossomos, ou seja, DNA e genes) de um óvulo de vaca, fundindo em seguida a célula desnucleada com outra humana, obtida de embrião -cujo uso em pesquisa é legal no Reino Unido.
Uma descarga elétrica "desperta" a construção celular, que começa a se dividir como um embrião, produzindo proteínas humanas características (pois só estão disponíveis cromossomos e genes desta espécie).
Trata-se sem dúvida de uma quimera, ou quase-quimera. A vaca é uma acionista minoritária, que entra só com 0,1% do capital genético, todo ele aportado nas mitocôndrias (organelas celulares indispensáveis para a vida, mas sem papel na produção das características do organismo).
Uma curiosidade, enfim. Só um pouquinho melhor que um 1º de abril.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007).
Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


Texto Anterior: + Marcelo Gleiser: Máquinas maravilhosas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.