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GENÉTICA
Grupo acha 481 trechos idênticos e sem função conhecida nas seqüências do homem, do camundongo e do rato
DNA fóssil amplia o enigma do genoma
MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA
O genoma humano é hoje um livro aberto, mas cada vez mais incompreensível. Agora os geneticistas descobriram que o DNA
humano contém pelo menos 481
não-genes -antes desqualificados como "lixo"- tão importantes quanto os genes, ou até mais
importantes. Tanto que estão na
praça há centenas de milhões de
anos, pelo menos mil vezes mais
tempo do que a própria espécie.
A descoberta surpreendente foi
feita por pesquisadores da Califórnia e da Austrália. Vasculhando os 5% do genoma humano
com alto grau de semelhança com
o DNA de camundongos e ratos,
eles encontraram 481 trechos de
DNA contendo ao menos 200 "letras" absolutamente idênticas e
na mesma ordem. A probabilidade de isso acontecer ao acaso, em
genomas com bilhões de letras, é
de 1 em 1022 (10 sextilhões).
Ou seja, não se trata de acaso,
mas de necessidade. Algo como a
gramática para a linguagem verbal, que muitos acreditam ser
uma estrutura inata do cérebro
humano, apesar de toda a diversidade das línguas. No caso dessas
481 seqüências ultraconservadas,
a gramática embutida conteria regras fundamentais de funcionamento dos genomas vertebrados.
Vertebrados, e não apenas mamíferos (grupo que reúne humanos e roedores). Isso porque um
grau similar de coincidência foi
verificado pelos cientistas da Universidade da Califórnia em Santa
Cruz (UCSC) e da Universidade
de Queensland (Austrália) entre
os mesmos 481 trechos de DNA
de galinha e de um peixe.
Mesmo não alcançando 100%, o
nível de coincidência ainda soa
quase inimaginável. No caso da
galinha, uma espécie distanciada
da humana por 300 milhões de
anos de evolução, 97% dos trechos apresentam 95% de identidade com os humanos. Já o peixinho fugu, a 400 milhões de anos
de distância, tem dois terços dessas regiões ultraconservadas com
77% de congruência. Em genomas de não-vertebrados como a
mosca drosófila, porém, isso não
foi observado.
"Tanto quanto podemos dizer,
a maioria desses elementos ultraconservados apareceram durante
a evolução dos vertebrados, talvez
durante o período em que os animais terrestres emergiram, ou um
pouco antes. Mas sua história
evolutiva inicial ainda é um mistério", disse David Haussler, líder
do grupo, num comunicado da
UCSC. O trabalho sai hoje na versão eletrônica da revista "Science"
(www.sciencexpress.org).
"Essas partes do genoma são
muito mais conservadas do que
poderíamos ter imaginado", disse
Gill Bejerano, do grupo de Haussler. "Achamos que esses segmentos evoluíram no passado e em seguida foram congelados naquela
posição, sendo herdados sem modificação desde então."
É muito raro isso acontecer com
o DNA, que sofre mutações o
tempo todo, ainda mais ao longo
de milhões de anos. Essas variações são a matéria-prima da seleção natural, que preserva na geração seguinte as modificações favoráveis à sobrevivência e à reprodução do indivíduo variante.
Haussler indica que essas seqüências ultraconservadas parecem ter sofrido uma seleção negativa, ou seja, uma pressão evolutiva para não mudar. É um indício
de que são muito importantes.
Risco de morte
"A conservação maciça dessas
seqüências, para mim, reflete
uma mensagem clara da natureza: "Mexa nessas seqüências e eu o
mato!" Os que a desafiaram não
estão entre nós para contar a história", comentou por e-mail o geneticista brasileiro Marcelo Nóbrega, 31, do Laboratório Nacional Lawrence Livermore dos
EUA, em Berkeley (Califórnia).
Nóbrega faz parte do grupo de
Edward Rubin, um dos primeiros
a localizar, há cerca de um ano,
um elemento ultraconservado de
DNA. O brasileiro qualificou o
trabalho de Bejerano e Haussler
como "muito interessante".
O mais intrigante é que a maioria desses trechos misteriosos de
DNA ocorrem fora dos genes, ou
pelo menos dos pedaços de genes
(chamados de éxons) que especificam diretamente as peças componentes de proteínas. Não são
"codificantes", como dizem os geneticistas, aferrados que estão a
uma metáfora -a do código genético- baseada na idéia de que
tudo que ocorre de importante
nas células envolve proteínas.
Ora, os elementos ultraconservados estão, sim, "codificando"
alguma coisa, ainda que não proteínas, e para lá de decisivas. Os
cientistas só não sabem dizer o
quê, nem como, nem por quê.
"É tarde demais para alterar o
sentido de "código", como em "código genético" ", disse Haussler
por e-mail. "Essas seqüências ultraconservadas em sua maior parte especificam algum outro tipo
de interações moleculares, ou de
maquinaria, e precisaremos usar
um nome diferente para isso. Mas
antes precisamos determinar seu
mecanismo de operação!"
Cientistas como Haussler encaram como um modo de vida não
desanimar diante de coisas incompreensíveis à primeira vista.
Numa escala de zero a dez, ele
avalia que a compreensão do genoma chegou a dois e que ainda
vai demorar "muitas décadas" até
que se chegue lá.
A complexidade do genoma,
porém, não o assusta: "É complexo, sim, mas é preciso tentar entendê-lo para fazer um bom trabalho de combate às doenças".
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