São Paulo, sexta-feira, 07 de maio de 2004

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GENÉTICA

Grupo acha 481 trechos idênticos e sem função conhecida nas seqüências do homem, do camundongo e do rato

DNA fóssil amplia o enigma do genoma

MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA

O genoma humano é hoje um livro aberto, mas cada vez mais incompreensível. Agora os geneticistas descobriram que o DNA humano contém pelo menos 481 não-genes -antes desqualificados como "lixo"- tão importantes quanto os genes, ou até mais importantes. Tanto que estão na praça há centenas de milhões de anos, pelo menos mil vezes mais tempo do que a própria espécie.
A descoberta surpreendente foi feita por pesquisadores da Califórnia e da Austrália. Vasculhando os 5% do genoma humano com alto grau de semelhança com o DNA de camundongos e ratos, eles encontraram 481 trechos de DNA contendo ao menos 200 "letras" absolutamente idênticas e na mesma ordem. A probabilidade de isso acontecer ao acaso, em genomas com bilhões de letras, é de 1 em 1022 (10 sextilhões).
Ou seja, não se trata de acaso, mas de necessidade. Algo como a gramática para a linguagem verbal, que muitos acreditam ser uma estrutura inata do cérebro humano, apesar de toda a diversidade das línguas. No caso dessas 481 seqüências ultraconservadas, a gramática embutida conteria regras fundamentais de funcionamento dos genomas vertebrados.
Vertebrados, e não apenas mamíferos (grupo que reúne humanos e roedores). Isso porque um grau similar de coincidência foi verificado pelos cientistas da Universidade da Califórnia em Santa Cruz (UCSC) e da Universidade de Queensland (Austrália) entre os mesmos 481 trechos de DNA de galinha e de um peixe.
Mesmo não alcançando 100%, o nível de coincidência ainda soa quase inimaginável. No caso da galinha, uma espécie distanciada da humana por 300 milhões de anos de evolução, 97% dos trechos apresentam 95% de identidade com os humanos. Já o peixinho fugu, a 400 milhões de anos de distância, tem dois terços dessas regiões ultraconservadas com 77% de congruência. Em genomas de não-vertebrados como a mosca drosófila, porém, isso não foi observado.
"Tanto quanto podemos dizer, a maioria desses elementos ultraconservados apareceram durante a evolução dos vertebrados, talvez durante o período em que os animais terrestres emergiram, ou um pouco antes. Mas sua história evolutiva inicial ainda é um mistério", disse David Haussler, líder do grupo, num comunicado da UCSC. O trabalho sai hoje na versão eletrônica da revista "Science" (www.sciencexpress.org).
"Essas partes do genoma são muito mais conservadas do que poderíamos ter imaginado", disse Gill Bejerano, do grupo de Haussler. "Achamos que esses segmentos evoluíram no passado e em seguida foram congelados naquela posição, sendo herdados sem modificação desde então."
É muito raro isso acontecer com o DNA, que sofre mutações o tempo todo, ainda mais ao longo de milhões de anos. Essas variações são a matéria-prima da seleção natural, que preserva na geração seguinte as modificações favoráveis à sobrevivência e à reprodução do indivíduo variante.
Haussler indica que essas seqüências ultraconservadas parecem ter sofrido uma seleção negativa, ou seja, uma pressão evolutiva para não mudar. É um indício de que são muito importantes.

Risco de morte
"A conservação maciça dessas seqüências, para mim, reflete uma mensagem clara da natureza: "Mexa nessas seqüências e eu o mato!" Os que a desafiaram não estão entre nós para contar a história", comentou por e-mail o geneticista brasileiro Marcelo Nóbrega, 31, do Laboratório Nacional Lawrence Livermore dos EUA, em Berkeley (Califórnia).
Nóbrega faz parte do grupo de Edward Rubin, um dos primeiros a localizar, há cerca de um ano, um elemento ultraconservado de DNA. O brasileiro qualificou o trabalho de Bejerano e Haussler como "muito interessante".
O mais intrigante é que a maioria desses trechos misteriosos de DNA ocorrem fora dos genes, ou pelo menos dos pedaços de genes (chamados de éxons) que especificam diretamente as peças componentes de proteínas. Não são "codificantes", como dizem os geneticistas, aferrados que estão a uma metáfora -a do código genético- baseada na idéia de que tudo que ocorre de importante nas células envolve proteínas.
Ora, os elementos ultraconservados estão, sim, "codificando" alguma coisa, ainda que não proteínas, e para lá de decisivas. Os cientistas só não sabem dizer o quê, nem como, nem por quê.
"É tarde demais para alterar o sentido de "código", como em "código genético" ", disse Haussler por e-mail. "Essas seqüências ultraconservadas em sua maior parte especificam algum outro tipo de interações moleculares, ou de maquinaria, e precisaremos usar um nome diferente para isso. Mas antes precisamos determinar seu mecanismo de operação!"
Cientistas como Haussler encaram como um modo de vida não desanimar diante de coisas incompreensíveis à primeira vista. Numa escala de zero a dez, ele avalia que a compreensão do genoma chegou a dois e que ainda vai demorar "muitas décadas" até que se chegue lá.
A complexidade do genoma, porém, não o assusta: "É complexo, sim, mas é preciso tentar entendê-lo para fazer um bom trabalho de combate às doenças".


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