|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ Marcelo Gleiser
O dilema da escuridão cósmica
A especulação desenfreada
faz a física virar metafísica
|
As ciências são baseadas em medidas e hipóteses construídas
para explicá-las. A história de
como essas hipóteses variaram desde
os primórdios do pensamento científico está intimamente ligada à nossa
capacidade de medir as propriedades
da natureza com precisão crescente.
Mas o que ocorre quando não conseguimos medir com precisão suficiente, quando não dispomos de tecnologia para diferenciar as hipóteses plausíveis e demonstrar qual é a correta? Essa é uma questão de grande
importância no desenvolvimento das
teorias científicas.
Talvez não seja exagero dizer que
estamos passando por um momento
de crise na física e na astronomia, onde não dispomos de dados para discernir dentre teorias que visam explicar o
mesmo fenômeno.
Não só não dispomos de tecnologia
no presente, como possivelmente não
a teremos por décadas. O perigo,
quando esse tipo de situação ocorre, é
nos perdermos nos labirintos da especulação desenfreada, transformando
física em metafísica.
Em geral, o que ocorre é o oposto:
novas tecnologias revelam novos fenômenos, que requerem novas teorias
para serem explicados. E, de fato, foi
assim que a presente crise começou.
Em 1998, dois grupos de astrônomos
descobriram uma anomalia na expansão do Universo. Desde 1929, sabemos
que as distâncias entre as galáxias estão aumentando de acordo com uma
lei bem simples, a chamada Lei de
Hubble: as velocidades de afastamento das galáxias crescem linearmente
com a sua distância: quanto mais longe a galáxia, maior a sua velocidade.
Isso vem ocorrendo desde a origem
do Universo, há 13,8 bilhões de anos.
Usando telescópios poderosos e técnicas avançadas de análise de dados, os
astrônomos mostraram que, de 5 bilhões de anos para cá, a expansão cósmica passou a acelerar, como se uma
espécie de antigravidade estivesse
afastando as galáxias umas das outras
ainda mais rapidamente do que prevê
a Lei de Hubble. A causa responsável
recebeu o nome de energia escura.
Imediatamente, hipóteses baseadas
em processos físicos completamente
diferentes foram propostas para explicar as novas observações. Até aí tudo bem, assim caminha a ciência.
O problema é que, passados 10 anos,
ainda não temos como diferenciar
qual é o caminho mais correto. E a
possibilidade de termos novas tecnologias capazes de fazer isso nas próximas duas décadas não é boa.
Numa das explicações, uma espécie
de fluido permeia todo o cosmos, idéia
muito semelhante ao venerado éter da
filosofia de Aristóteles, a quinta-essência que, segundo o grande pensador grego, preenchia o espaço, tornando-o pleno. Esse fluido, hoje chamado de "constante cosmológica", reapareceu com Einstein que, em 1917, usou-o
em seu modelo cósmico.
Outra explicação afirma que o cosmo é preenchido por uma espécie de
matéria difusa que, ao contrário da
constante cosmológica, pode variar no
espaço e no tempo, mesmo que discretamente. Ainda outra afirma que a
teoria da gravidade de Einstein tem
que ser modificada. Uma dessas três
explicações -ou talvez outra, desconhecida- está certa. Mas qual?
A questão é, sem dúvida, abstrata.
Mas faz parte da tentativa milenar de
explicarmos o mundo em que vivemos
e qual o nosso lugar nele. Do esforço,
novas tecnologias serão desenvolvidas
e novas idéias sobre o cosmo surgirão.
Ao contrário do que possa parecer,
crise é coisa boa em ciência. Pelo menos aquelas que podem ser resolvidas.
Apostando na nossa inventividade,
acredito que encontraremos a resposta para o mistério da energia escura.
Muito possivelmente, ela surpreenderá a todos.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
Texto Anterior: Biologia do sarcasmo Próximo Texto: + Marcelo Leite: As políticas do embrião Índice
|