São Paulo, domingo, 08 de junho de 2008

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Biologia do sarcasmo

Cientista usa cenas cômicas para estudar o impacto das demências na capacidade de entender ironia

DAN HURLEY
DO "NEW YORK TIMES"

Não havia nada de interessante sobre o estudo de Katherine Rankin sobre o sarcasmo -pelo menos nada que faça valer à pena você perder seu tempo. Tudo o que ela fez foi usar imagem por ressonância magnética para achar o local do cérebro que detecta o sarcasmo.
Até aí, você provavelmente já sabia que é o giro paraipocampal direito.
O que talvez você não saiba é que para entender o sarcasmo -os comentários maliciosos que têm o sentido oposto do que se quer dizer- é preciso um truque mental sutil que reside no núcleo das relações sociais: antecipar o que os outros estão pensando. Aqueles que perdem essa habilidade, seja por meio de uma lesão cerebral ou por meio de demências que afligem os pacientes no estudo de Rankin, simplesmente não entendem quando durante um furacão alguém exclama "Puxa, que tempo maravilhoso!".
"Muito da cognição social para a qual não damos valor e aprendemos durante a infância, a habilidade de perceber que alguém está sendo irônico ou sarcástico ou raivoso -a chamada teoria da mente que nos permite entrar na mente de outra pessoa- em geral é perdida rapidamente durante demências dos lobos frontais e temporais [do córtex cerebral]", afirma Bradley Boeve, neurologista comportamental da Clínica Mayo, de Rochester, no Minnesota (EUA).
"É muito perturbador para membros da família, mas neurologistas não têm tido boas ferramentas para medir isso. É por isso que eu acho esse estudo do grupo de Kate Rankin tão fascinante", disse.

Piada explicada
Ranking, professora do Centro de Memória e Envelhecimento da Universidade da Califórnia em San Francisco, usou um teste inovador desenvolvido em 2002, o Tasit (Teste de Atenção sobre Inferência Social, na sigla em inglês). Ele incorpora exemplos filmados de diálogos em que as palavras de uma pessoa parecem bastante diretas quando lidas no papel, mas são proferidas em estilo sarcástico ridiculamente óbvio. Parecem tiradas de um seriado de comédia televisiva.
"Eu estava testando a habilidade das pessoas para detectar sarcasmo baseada inteiramente em pistas "paralingüísticas", a maneira das pessoas se expressarem", diz Rankin.
Em um dos vídeos, um homem entra na sala de uma colega chamada Ruth para dizer a ela que não poderia cumprir sua promessa de assistir à aula que ela daria. "Não se incomode, não se sinta mal por causa disso", ela responde, entoando os agudos e graves que se costuma usar para falar com bebês. "Eu sei que você está muito atarefado -não seria justo eu esperar que você arranjasse um tempinho", acrescenta, com expressão de desprezo.

Fora de lugar
Apesar de as pessoas com mal de Alzheimer moderado perceberem o sarcasmo tão bem quanto qualquer um, essa habilidade se esvai em pessoas com demência semântica, uma doença cerebral progressiva que faz as pessoas esquecerem as palavras e seus significados.
"Deveríamos esperar que, porque elas perderam a linguagem, elas prestariam mais atenção aos elementos paralingüísticos de comunicação", diz Rankin. Para sua surpresa, porém, as imagens de ressonância magnética revelaram que a parte do cérebro perdida entre aqueles que falharam em perceber sarcasmo não estava no hemisfério esquerdo do cérebro, que se especializa em linguagem e em interações sociais, mas em uma parte do hemisfério direito que havia sido identificada anteriormente como importante apenas para detectar alterações no contexto de fundo em testes visuais.
"O giro paraipocampal direito deve estar envolvido em detectar mais do que contexto visual -ele percebe contexto social também", diz Rankin.
A descoberta se encaixa em uma visão sutil crescente sobre o papel do hemisfério direito, afirma Anjan Chatterjee, professor de ciências cognitivas da Universidade da Pensilvânia.
"O hemisfério esquerdo é o da linguagem no sentido estrito, compreensão de palavras individuais e sentenças", diz Chatterjee. "Mas agora se acredita que a apreciação de humor e linguagem não literais, pregar peças e fazer piadas, requer o hemisfério direito."
Boeve afirma que o estudo oferece esperança de que um teste como o Tasit possa ajudar no diagnóstico de demência frontotemporal. "Essas pessoas têm desempenho totalmente normal em testes neuropsicológicos tradicionais no início da progressão da doença", afirma.
"A família vai dizer que a pessoa mudou drasticamente mas, mesmo neurologistas, com freqüência, vão dar de ombros e dizer que é crise da meia-idade." Na impossibilidade de usar um teste, ele afirma, a melhor maneira de diagnosticar os problemas é conversar com membros da família sobre como a pessoa mudou com o tempo.

Variação natural
Após apresentar suas descobertas no encontro da Academia Americana de Neurologia, em abril, Rankin foi questionada sobre se mesmo aqueles com cérebros saudáveis podem ter variações nas áreas cerebrais que expliquem quão bem eles captam sarcasmo.
"Todos nós temos nossos fracos e fortes em habilidades cognitivas, incluindo nossa habilidade para detectar pistas sociais", respondeu.
Seria possível, então, que o apresentador de TV Jon Stewart, que usa sarcasmo a torto e a direito no "The Daily Show", tenha um giro paraipocampal desproporcionalmente grande? "Provavelmente ele é normal", diz Rankin. "O giro paraipocampal está envolvido em entender o sarcasmo, não em ser sarcástico."


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