São Paulo, sábado, 08 de outubro de 2005

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BIOMEDICINA

Congresso investiga falhas de revisão de artigos, preconceito contra países pobres e a ameaça do acesso livre

Editores debatem sobrevida de periódicos

MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL A CHICAGO

Se você é dos que vêem a revisão por pares ("peer review", em inglês) como a salvação da lavoura científica, pense duas vezes. Os próprios editores de alguns dos periódicos biomédicos mais cortejados do planeta estão insatisfeitos com essa forma de controle, como mostrou um congresso internacional realizado no mês passado em Chicago. Diagnóstico mais chocante: o sistema é impotente diante das maiores ameaças à idoneidade científica, como o peso da indústria farmacêutica.
Calcula-se que existam cerca de 25 mil periódicos científicos no mundo que usam a revisão por pares. Como não são lidos por leigos, poucos não-cientistas sabem que artigos relatando pesquisas só saem nessas publicações depois que um ou mais cientistas-revisores anônimos avaliam o trabalho dos colegas -muitas vezes, competidores. Cada revisor pode recomendar a publicação do artigo ("paper", na gíria acadêmica) como está, pedir alterações e esclarecimentos ou sugerir rejeição. A decisão final é dos editores.
Tomada como infalível por muitos pesquisadores e jornalistas de ciência, a revisão por pares não impediu -para citar um exemplo recente- que fosse publicado em 2004 na revista "Cell" um trabalho de cientistas da UnB depois cancelado ("retracted"), no final do mês passado. De duas, uma: ou o artigo agora desqualificado estava errado desde o início, e portanto seus três revisores falharam, ou estava certo, e falharam agora os editores do periódico, ao publicar uma nota unilateral de retração, sem a concordância dos autores. Nenhuma das opções é boa para o sistema, se a "Cell" for representativa das práticas editoriais científicas.
Há quem veja na revisão por pares um processo "lento, caro, pródigo com o tempo acadêmico, altamente subjetivo, propenso a vieses, deficiente para detectar defeitos grosseiros e quase inútil para detectar fraudes", como definiu seis anos atrás Richard Smith, então editor-chefe de um periódico respeitado, o "British Medical Journal". Depois de deixar o "BMJ", ele se tornou um crítico mordaz da imprensa científica e ajudou a fundar a Public Library of Science (PLoS), uma coleção de periódicos de acesso aberto pela internet que está tirando o sono dos editores mais tradicionais.
Smith não tem papas na língua, como demonstrou em entrevista para Reinaldo José Lopes, em julho, nesta Folha. Eis o título de um artigo seu de maio deste ano: "Periódicos Biomédicos são uma Extensão da Divisão de Marketing das Companhias Farmacêuticas". No congresso de Chicago, foi direto ao ponto e causou mal-estar: "Não sei se os periódicos vão sobreviver mais cinco anos".

O peso da indústria
A reunião era um encontro científico de fato, não um evento social. Foram 42 pesquisas apresentadas na sessão plenária e 53 pôsteres distribuídos por um salão de baile do Fairmont Hotel. Na maioria, levantamentos apontando falhas no sistema consagrado de publicação de pesquisas -com atenção especial para os testes clínicos em que se baseiam as autorizações para comercialização de remédios. Coisa séria, escolhida a dedo com ajuda, claro, da revisão por pares.
A sucessão de apresentações, ao longo de três dias, deixaria deprimido qualquer um com fé mais sólida na justiça e na transparência da revisão por pares. Várias delas tentavam medir com rigor estatístico as distorções do sistema provocadas pela influência das empresas de fármacos. Ou seja, estudos que permitiram a Richard Horton, editor-chefe da prestigiada "Lancet", afirmar com base empírica: "Os periódicos se transformaram em operações de lavagem de informação para a indústria farmacêutica".
Estudos financiados por empresas, no entanto, costumam ser tecnicamente bem-feitos, pois elas contam com fartos recursos. O custo dos testes clínicos, como alertou uma ex-editora do "New England Journal of Medicine", Marcia Angell, costuma ser computado ao lado de verbas para promoção de remédios entre os US$ 800 milhões supostamente gastos, em média, para pôr uma nova droga nas farmácias.
Ainda que bem feitos, os testes clínicos patrocinados pela indústria são desproporcionalmente favoráveis aos remédios novos. Isso decorre de dois subterfúgios: fazer as "perguntas certas" e divulgar só os resultados bons.

Conclusões vs. dados
Um bom exemplo de enviesamento foi apresentado por Veronica Jank, da Universidade de Washington (localizada no oeste dos Estados Unidos), durante o congresso. Ela se debruçou sobre estudos chamados de meta-análises, grandes compilações estatísticas da literatura sobre certo remédio ou tratamento. Entre 1966 e 2004, ela encontrou 71 dessas revisões sobre a ação de drogas anti-hipertensivas, das quais cerca de um terço havia sido patrocinado por empresas.
Jank se pôs a comparar os resultados apresentados (dados numéricos) com as conclusões e interpretações extraídas pelos autores, para verificar se havia discrepâncias. Em 37% dos estudos da indústria as conclusões positivas estavam em desacordo com os dados. Entre pesquisas bancadas só por instituições acadêmicas, isso ocorria em 0% dos casos. "Perturbador, ainda que não surpreendente", comentou Smith.
É por essas razões que outro participante incisivo do congresso de Chicago, o dinamarquês Peter Gotzsche (da instituição The Nordic Cochrane Centre), afirmou ao final de uma de suas apresentações: "Revisões sistemáticas de remédios não deveriam ser financiadas pela indústria. Se forem, não se deveria confiar nelas".
Detalhe: todos esses estudos foram submetidos à revisão por pares. Diante de tamanho fracasso, alguns editores já começam a pensar numa solução radical -parar de publicar resultados de testes clínicos nos periódicos. A saída estaria num registro global tanto de protocolos quanto de relatórios finais de todos os estudos, para que a comunidade médico-científica mundial pudesse avaliá-los diretamente.


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