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MICRO/MACRO
A importância do imperfeito na arte e na ciência
MARCELO GLEISER
especial para a Folha
O conceito de perfeição é algo
que guia muitas de nossas aspirações, tanto em nossas vidas
privadas como no ambiente profissional. Falamos, ou ouvimos
falar, de "relações perfeitas"
entre duas pessoas como um
modelo a ser seguido, ou de almejar sempre a perfeição no trabalho, "quanto mais perfeito,
mais eficiente", etc. Na religião,
aprendemos que nosso objetivo
é chegar ao paraíso, lar da perfeição absoluta, final de jornada
para aqueles que, se não conseguiram atingir a perfeição em vida, pelo menos tentaram. E, claro, o belo e o perfeito em geral
andam de mãos dadas.
Como não poderia deixar de
ser, muito da criatividade humana, nas artes ou nas ciências, é
inspirado pelo ideal de perfeição.
Mas nem tudo. Pelo contrário,
várias idéias que revolucionaram nossa produção artística e
científica vêm justamente da
exaltação ou da percepção da
importância do imperfeito.
O leitor pode pensar que estou
enlouquecendo ou que acordei
de mau humor. Mas não é por aí.
Nas artes, exemplos do rompimento com a busca pela perfeição são fáceis de encontrar; de
certa forma, quase toda a pintura moderna é ou foi baseada nesse esforço de explorar o imperfeito. Isso não significa que o imperfeito não seja belo. Por exemplo, quem já apreciou um quadro de Monet, em particular
aqueles inspirados por seus jardins em Giverny, sabe que existe
muita beleza no imperfeito. Talvez possamos até dizer que a
pintura moderna tem como objetivo encontrar a estética do imperfeito. O mesmo com a música
atonal ou esculturas abstratas.
Hoje, o imperfeito é muito mais
inspirador do que o perfeito.
Na física moderna, o imperfeito ocupa um lugar de honra. De
fato, caso a natureza fosse perfeita, o Universo seria um lugar
muito sem graça. Do microcosmo das partículas elementares
da matéria ao macrocosmo das
galáxias e mesmo do Universo,
imperfeição é fundamental. Isso
não significa que a idéia de imperfeição, ou matematicamente,
de simetria exata, não seja importante na construção de nossas teorias. Sem a menor dúvida,
o fato de muitos sistemas apresentarem um alto grau de simetria é fundamental para seu estudo. Por exemplo, a estrutura hexagonal dos flocos de neve é uma
manifestação macroscópica de
simetrias que existem em nível
molecular. Mas, ao mesmo tempo, dois flocos de neve jamais serão iguais. A natureza cria uma
variação sem fim em torno de
um mesmo tema, ou simetria.
Segundo nossas teorias atuais,
a geração de estruturas complexas a partir de componentes
simples é um processo que depende fundamentalmente de alguma imperfeição. De modo geral, a coisa funciona assim: primeiro, construímos um modelo
que exibe um altíssimo grau de
simetria. Por exemplo, esse modelo pode descrever como as
partículas elementares da matéria interagem entre si a energias
muito altas, mais altas do que as
que podemos simular em experimentos. Como consequência
dessa simetria, o modelo exibe
certas propriedades. A teoria da
grande unificação diz que, em
energias muito altas, as forças
nucleares forte e fraca são unificadas com a força eletromagnética. A unificação das forças é
consequência das simetrias exibidas com as interações das partículas com essas energias.
O segundo passo é dizer que a
simetria é quebrada em energias
mais baixas. Ou seja, em energia
mais baixa, as forças forte, fraca
e eletromagnética não se comportam mais de modo unificado
ou simétrico. Em particular, esse
é o caso das energias em que vivemos, em nossa realidade assimétrica. Durante a história do
Universo, houve várias quebras
de simetria. Como produto dessas imperfeições, apareceram as
massas dos elétrons, prótons e
nêutrons, as partículas que
constituem a matéria. Vários outros "fósseis" das imperfeições
cósmicas foram propostos nos
últimos 20 anos. Cada vez fica
mais claro que, a nova ciência,
como a nova arte, precisa do imperfeito para criar.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica
do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e
autor do livro "A Dança do Universo"
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