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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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BIODIVERSIDADE

Técnica inédita no Brasil usa material genético das fezes de animal raro e pode identificar espécie e sexo

Cães e DNA rastreiam "veado-fantasma"

Divulgação Projeto Cervídeos Brasileiros/Unesp
Veado-bororó no criadouro científico da Unesp de Jaboticaba


REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Pesquisadores da Unesp (Universidade Estadual Paulista) usaram DNA extraído de fezes, método empregado pela primeira vez no Brasil, para resolver um problema espinhoso: identificar espécies de veados, que só se arriscam a pastar à noite na floresta.
A técnica também vem ajudando a flagrar exemplares de uma espécie nova e raríssima de veado, que pode estar restrita a apenas uma reserva de mata atlântica de São Paulo. "É um bicho meio saci-pererê: as pessoas dizem que existe, mas é difícil achá-lo", brinca José Maurício Barbanti Duarte, do Departamento de Zootecnia da Unesp de Jaboticabal, onde foi criado o método.
O misterioso cervídeo -família dos cervos- é o veado-bororó (Mazama bororo, para os cientistas). Ele foi descoberto por Duarte em 1996, misturado em cativeiro a outra espécie muito parecida. "O pessoal dos zoológicos nos ligava dizendo: "Olha, tem um bicho aqui que parece veado-mateiro, mas é meio estranho"."

Cromossomos diferentes
A dúvida só foi sanada quando Duarte analisou os cromossomos, estruturas emparelhadas que guardam o material genético das células, na forma de fitas ultracompactadas de DNA. Os veados estranhos tinham 17 pares deles, enquanto os mateiros têm 25.
Estava estabelecida a nova espécie, uma vez que essa incompatibilidade cromossômica basta para impedir o cruzamento entre esses animais com produção de descendência fértil.
O bicho ganhou o nome de veado-bororó porque, ao investigar exemplares de museu em busca do misterioso animal, Duarte encontrou um veado empalhado que aparentemente era do mesmo tipo, com uma legenda que levava esse nome. Mas ainda era preciso descobrir onde a nova espécie aparecia na natureza, já que os registros de chegada aos zôos e museus eram vagos.
Em geral, isso seria resolvido com a chamada armadilha fotográfica, que detecta a aproximação do bicho à noite graças a um sensor infravermelho e tira o retrato dele. O problema é que visualmente o veado-bororó é indistinguível de seus parentes.

Farejadores de DNA
Duarte e seus colegas até tentaram contornar isso capturando alguns exemplares, mas não deu muito certo. Aliás, foi um desastre: "Capturamos o primeiro animal em junho de 2000, no Parque Estadual Intervales, na serra de Paranapiacaba. Desde então, conseguimos achar só quatro exemplares, sendo que dois deles foram comidos por uma onça, outro morreu durante a captura, e só um continua sendo monitorado".
O jeito foi apelar para uma combinação inusitada de habilidade animal e tecnologia humana. Com a ajuda de um bom cão farejador, os pesquisadores passaram a localizar as fezes dos veados, ao mesmo tempo em que criaram um kit capaz de identificar quatro espécies diferentes de cervídeo (veado-mateiro, veado-catingueiro, veado-bororó e veado-bororó-do-sul) pelo DNA no estrume.
A cédula de identidade biológica usada para autenticar os bichos vem do DNA das mitocôndrias, usinas de energia das células. Ao sequenciar (soletrar) o DNA mitocondrial de cada espécie, os pesquisadores criaram uma etiqueta genética para cada uma delas. O material analisado vem das células presentes no muco intestinal que envolve as fezes.
Usando enzimas (intermediários moleculares que facilitam a maioria das reações químicas nos seres vivos), eles identificam os genes de cada veado. Em seguida, separam-nos do DNA de plantas que o animal ingeriu -já que a enzima "corta" a sequência de DNA em lugares diferentes, dependendo da espécie.
O grupo também está usando a técnica para flagrar o sexo do animal. Isso é feito por meio do cromossomo Y, a marca da masculinidade nos mamíferos. Até as diferenças entre indivíduos podem ser detectadas, graças aos microssatélites, repetições das "letras" químicas A, T, C e G na sequência do DNA que variam de forma típica de um animal para outro.

Sucesso preocupante
A estratégia não poderia ter sido mais bem-sucedida: o teste genético conseguiu flagrar nada menos que 15 exemplares do esquivo veado. Essa é a boa nova.
A má notícia é que a espécie recém-descoberta parece estar restrita, dentro do Estado de São Paulo, ao Parque Estadual Intervales, área de 30 mil hectares (veja mapa acima). Falta ainda verificar se a espécie existe no Paraná.
"Os resultados são bastante assustadores. Ele deve ser extremamente raro mesmo, endêmico [exclusivo] da mata atlântica", diz Duarte. "O difícil é dizer se ele sempre foi muito raro ou se foi a destruição da mata atlântica que o tornou raro antes mesmo de ser identificado como nova espécie", pondera o pesquisador.
Seja como for, a nova técnica pode ajudar a entender o que restou dos cervídeos do Sul e do Sudeste e a programar estratégias para conservá-las. Pode ainda apontar, no futuro, se mais alguma espécie de veado-fantasma anda escapando à atenção dos pesquisadores no Brasil.
O trabalho teve apoio do Probio, programa de biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente.


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